Uma frase do ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica circula, depois da surpresa com a eleição na Argentina, mesmo entre economistas que não são exatamente fãs de seu governo. A primeira frase já se tornou um mantra:
— A Argentina é uma coisa indecifrável.
Mas apesar da frase de efeito, o próprio Mujica se dedica a tentar decifrar:
— Como se explica que o ministro da Economia, com uma inflação como a que tem a Argentina (138% em 12 meses, 12,7% só no mês passado), vá disputar a presidência? Por que existe uma coisa, que não está de acordo com ele, mas vai votar nele, que é o peronismo. Esse animal existe, é uma mitologia do povo argentino.
Mesmo para brasileiros que tentam acompanhar o dia a dia no país vizinho, não é fácil entender. Primeiro, que Sergio Massa, depois de vencer a eleição em primeiro turno a despeito de o país estar mergulhado em uma das maiores crises de sua história, tenha concedido uma coletiva de imprensa... no Ministério da Economia.
É muito estranho para os brasileiros, habituados à boa prática da desincompatibilização. O palavrão quer dizer que, se um ministro quiser disputar eleições, é obrigado a deixar o cargo. Não é assim na Argentina.
Segundo, é voz corrente no país que, com o presidente, Alberto Fernández, praticamente escondido dada sua altíssima impopularidade, e a vice, Cristina Kirchner, recolhida desde que foi condenada a seis anos de prisão por corrupção, é Massa que governa o país na prática. No Brasil, um presidente, governador ou prefeito que dispute a reeleição não é obrigado a deixar o cargo. Como virtual chefe do Executivo nesse momento, é o que faz Massa.
E essa posição faz parte da explicação do resultado das urnas. Há o marketing da racionalidade para se opor à irracionalidade do adversário, Javier Milei - que não é só marketing, já que Massa integra uma ala do peronismo que se opõe ao kirchnerismo. Também contribuiu a estratégia que opôs ao medo do presente - inflação alta, aumento da pobreza, disparada do dólar - o medo do futuro - as propostas tão descabeladas quanto o adversário.
Mas há motivos para além do marketing. Uma é a citada por Mujica, o mitológico peronismo. E um importante é o que Massa pôde fazer, durante a disputa, ocupando o Ministério da Economia: entre várias medidas adotadas às vésperas da eleição, elevou a isenção de imposto de renda para quem ganha o equivalente a até R$ 25 mil - uma fortuna na empobrecida Argentina de hoje.
Na indecifrável Argentina, o candidato identificado com o ex-presidente Jair Bolsonaro é o adversário - o que ajudou a espantar eleitores, avaliam analistas argentinos. Mas quem se comportou como o ex-ocupante do Planalto no quesito medidas eleitoreiras foi Massa.
Observação: para quem teve dificuldade de decifrar as manchetes de segunda-feira dos jornais argentinos, "ballottage", em francês, é usada para se referir ao segundo turno da eleição. Um dos jornais, o clássico La Nación, usa a expressão no original, o mais arrojado Clarín usa a versão argentina "balotaje". Ambas são pronunciadas, por lá, como "balotaxe".