André Perfeito atuou por anos como economista-chefe de corretoras e, depois de vender sua participação na Necton, passa uma fase independente, apenas com consultoria. Nessa condição, fez uma das projeções mais otimistas que a coluna já viu sobre 2023. Agora, diante da tensão entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirma que é mais um jogo para marcar posições - no bom sentido, esclarece, porque é o que se espera de cada um - do que uma situação de conflito real. E avalia que, mais do que ser economicamente "ortodoxo" - como se esperava - ou "heterodoxo" - como se teme, o atual presidente será "heterogêneo" durante seu mandato.
Você avalia que o atual governo colheu uma herança "bendita", é isso mesmo? O superávit não foi pedalado?
Há dois eixos para pensar 2023: um é o dessa herança ao menos benigna, "bendita" é mais para contrapor a "maldita", e outro é que Lula não se comporta nem de forma ortodoxa nem heterodoxa na economia, mas de maneira heterogênea. Não sei porque o mercado tem tanto faniquito. Lula sempre foi assim: bate no cravo e na ferradura.
O que há de benigno na herança?
Guedes fez um esforço para cortar gastos na máquina pública. O caso mais dramático foi com as universidades, onde acabaram faltando insumos básicos para convivência civilizada. Faltou até papel higiênico, então, se comprar papel higiênico, o gasto já sobe. Mas isso também abre espaço para o governo atual começar de uma base relativamente menor e recompor o gasto de forma mais organizada.
Então, vai aumentar o gasto, mas não é para algo diferente, exótico. É para restabelecer a ordem.
O superávit de 2022 é crível?
Não dá para imaginar que o que foi feito antes era sustentável. Muitos cortes de gastos não tinham como ser duradouros. De novo, o exemplo são as universidades. Se corta a ponto de não ter banheiro funcionando, é um corte que só gera resultado bom em um ano. E também não é sustentável porque teve um waiver (licença, perdão) para não pagar precatórios. E por várias outras questões, joga um nível de estresse muito grande sobre os ministros Haddad e Tebet. Necessariamente as condições piorariam, por isso tiveram de fazer a PEC da Transição, que acabou gerando a possibilidade de tentar administrar a curto prazo. Então, vai aumentar o gasto, mas não é para algo diferente, exótico. É para restabelecer a ordem.
Nesse quadro, como se explica a forte entrada de investimento estrangeiro em janeiro?
Ao longo dos últimos anos, o estrangeiro ficou muito ressabiado sobre o destino político do Brasil. Muitos entendiam Bolsonaro como populista de direita que poderia levar o Brasil para uma questão institucional mais difícil. Quem acompanha a discussão lá fora vê uma resistência muito grande a Bolsonaro. Era comparado ao (Recep) Erdogan, presidente da Turquia, ao da Hungria (Viktor Orbán, primeiro-ministro no cargo desde 2010). Isso tudo gerou resistência de investidores. O cenário de Brasil para 2023 é de mais crescimento por causa da eleição de Lula. O Bolsa Família de R$ 600 dinamiza a demanda. Depois o Brasil está barato sob vários aspectos. A bolsa subiu em 2022, mas os ativos estão em patamar muito ruim. Desse ponto de vista, se Bolsonaro tivesse ganho talvez não fosse o fim do mundo.
Com todo o discurso de independência, não tem como. O BC está fazendo um trabalho institucional, assim como o presidente da República. É um jogo, no bom sentido. Os presidentes têm de marcar posições.
Nesse início de ano, quem foi comparado a Erdogan foi Lula, pelo discurso de desafio ao mercado (uma das medidas do turco foi um corte drástico de juro com inflação subindo).
Tem uma característica do Lula: ele sempre falou grosso para negociar depois. Chama Campos Neto de "esse cidadão", mas diz que vai discutir a autonomia depois de acabar o mandato do BC. Diz que a meta de inflação é muito baixa, mas quem define isso é o CNM (Conselho Monetário Nacional), que tem Haddad, Tebet e Campos Neto. Mesmo se Haddad propusesse subir a meta, seria voto vencido.
Já não houve um "custo Lula", com o adiamento das projeções de corte no juro?
As top five (grupo das cinco consultadas que mais acertam as projeções) do Focus projetam inflação em 12 meses de 3% em junho. Se isso ocorrer, como o BC vai manter a Selic em 13,75%? Com todo o discurso de independência, não tem como. O BC está fazendo um trabalho institucional, assim como o presidente da República. É um jogo, no bom sentido. Os presidentes têm de marcar posições. Não parece tão agudo. Lula produz falas que dão conta de endereçar demandas da esquerda, o mercado se assusta. Ele faz o seu trabalho ao sinalizar que está "enfrentando".
Existe preocupação com crédito privado, depois dos problemas com a Americanas e outros?
Não de forma geral. De maneira específica, cabe a órgãos fiscalizadores se posicionar. Aí será preciso que funcionem as instituições de mercado. É claro que jogar a Selic de 2% para 13,75% ao ano criou problemas. Ficou difícil pagar acima do CDI para obter dinheiro emprestado. Mas insisto que, a despeito da sinalização do Copom, mesmo que o IPCA não chegue a 3%, mas a 5% em junho, o BC não tem como manter o juro em 13,75%. Seria uma taxa real (juro nominal menos a inflação) de 8,75%. Já está entrando dinheiro por arbitragem de juros (quando o investidor se financia em países com juro baixo para aplicar nos que têm taxas altas, como o Brasil), o real vai seguir se apreciando. Pode ir a R$ 4,50, imagina a gritaria que vai ter. Com risco de recessão nos Estados Unidos e na Europa, crise na Ásia, Rússia em guerra e complicações internas na Índia, só sobra o Brasil para o investidor externo.