Cérebro por trás das propostas de emenda constitucional 45 e 110, pilares da reforma tributária, Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, reage com modéstia genuína ao ser chamado de "pai" dessa mudança. Diz que as propostas resultam de um longo processo, desde a Constituição de 1988 e cita Ricardo Varsano, um dos precursores desses estudos. Lembra que já houve várias tentativas, como as elaboradas pelo então deputado Mussa Demes, que foi do PDS para o PFL e propôs o que considera "uma ótima reforma para a época". Hoje, com tecnologia, pondera, é possível fazer melhor. Às vésperas da definição de um processo eleitoral, há certo consenso de que esse debate amadureceu e tem chances de ao menos reduzir o tamanho do "manicômio tributário" do Brasil. Avalia que o relatório da PEC 110 tem avanços em relação à 45 e lembra que a reforma do Imposto de Renda, que inclui a proposta de taxação de dividendos - que virou "solução" para promessas de campanha -, está em outro pacote. E se for bem feita, alerta, não deve render muita arrecadação extra.
Agora vai?
Acho que, já nesse mandato, a reforma tributária teria tido grande chance se tivesse recebido apoio do governo, que ficou contra por razões políticas, não técnicas. Foi vista como uma agenda de Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara dos Deputados), de quem o ministro da Economia e o presidente da República não gostam. Não andou porque o governo resolveu bancar a proposta da CPMF que, até hoje, é o ideal de reforma do Guedes. Então, acho que vai. Tem chance grande de avançar no próximo governo. Em parte, porque há amadurecimento e identificação mais clara das resistências a partir das discussões na comissão mista do Congresso. Por outro lado, só vai se, de fato, virar prioridade do governo. Esse tipo de reforma sempre gera resistência. Existem as setoriais, que deve ser superada com negociação e alguns ajustes, mas ainda assim é preciso ter o apoio do governo. E não só colocando seu capital político, mas ajudando a população a entender. Se disser que é uma reforma sobre a tributação do consumo, as pessoas não vão entender. É preciso destacar um efeito muito positivo, que é o aumento de poder de compra. Não imediato, mas vem no longo prazo.
Vai exigir alguma negociação, talvez com outra medida, como a desoneração da folha de salários. Existe parte do setor empresarial que gosta da CPMF com a ideia de imposto único.
Quais são os grandes focos de resistência?
Do ponto de vista federativo, os grandes municípios, que não querem perder a competência de cobrar ISS (Imposto sobre Serviços). Em contrapartida, há apoio de todos os Estados e pequenos municípios. O modelo de transição previsto na PEC 110, se for bem explicado, ajuda a reduzir essa resistência. Do ponto de vista setorial, o de serviços resiste mais. Em parte, é por incompreensão do projeto. Os prestadores de serviços que estão no meio da cadeia serão beneficiados. Mesmo que pague a alíquota integral, dá crédito integral ao contratante, o que reduz a carga. Vai exigir alguma negociação, talvez com outra medida, como a desoneração da folha de salários. Existe parte do setor empresarial que gosta da CPMF com a ideia de imposto único. Também há parte do setor agrícola que resiste à reforma tributária, mas ainda é possível negociar.
Nas últimas semanas, a tributação sobre dividendos voltou ao debate como "solução" para promessas que envolvem gastos feitas para 2023. A conta fecha?
Primeiro, a tributação sobre dividendos não resolveria o problema do teto, que é sobre os gastos. Um aumento de tributo não eleva o teto. Segundo, é preciso ter muito cuidado com a ideia de que tributar dividendos vai gerar um monte de recursos. Do ponto de vista técnico, o padrão mais comum na maioria dos países desenvolvidos é ter as duas tributações, uma sobre as empresas e outra sobre dividendos. Nesse caso, a alíquota sobre a empresa é muito mais baixa do que no Brasil. Portanto, se passar a tributar dividendos sem mudar a cobrança de imposto de renda de empresas vai ter efeito muito negativo sobre a atração de investimentos para o país e, em consequência, efeito negativo sobre o crescimento de longo prazo. Então, na prática, a taxação de dividendos tem de ser adotada com redução na alíquota das empresas. Taxação de dividendos bem feita não trará grande aumento de arrecadação, isso se houver. Depende muito de qual vai ser o modelo. Quando se faz essa projeção com alíquotas semelhantes às médias da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, da qual o Brasil quer participar) fica perto do zero a zero. E o projeto de mudança do Imposto de Renda que foi aprovado na Câmara é muito ruim. É melhor não aprovar nada do que aprovar do jeito que está.
Sou a favor da redução da alíquota do IR das empresa e da taxação de dividendos. Tem problemas,mas mais benefícios do que custos, desde que seja bem feita.
Por quê?
Por exemplo, prevê que todas as empresa com faturamento até R$ 4,8 milhões serão isentas na distribuição de dividendos. O discurso parece correto: seria um benefício para pequenas empresas. Mas cria um baita problema para o Brasil. Vai estimular empresas a se fragmentarem para continuar dentro do limite. Por exemplo, uma empresa que tem receita de R$ 40 milhões que querer se dividir em 10 para ficar isenta. Isso é um desastre do ponto de vista distributivo. Essa faixa, que já paga pouco, vai pagar menos ainda. E ainda é péssimo do ponto de vista da competitividade das empresas brasileiras. Então, é preciso tomar muito cuidado com a forma como será feita essa mudança. Fica de um lado um grupo de pessoas com renda mensal de R$ 100 mil pagando pouco imposto e um trabalhador formal com renda média muito menor pagando muito mais. Sou a favor da redução da alíquota do IR das empresa e da taxação de dividendos. Tem problemas,mas mais benefícios do que custos, desde que seja bem feita.
Se não tem pote de ouro no fim do arco-íris da taxação de dividendos, qual será a solução?
O pote de ouro é o crescimento econômico. As PECs 45 e 110 foram feitas para manter a carga tributária, só simplificando a arrecadação. Esse é o ganho que faz a economia crescer mais. Se cresce e arrecada mais, há a discussão sobre o que fazer com essa receita: mais gasto público ou redução de alíquotas? Mas o grande benefício é o maior crescimento econômico e da renda das pessoas.
O custo de ter transição longa é menor do que os riscos de não ter, inclusive porque pode gerar percepção negativa da reforma tributária.
Como responde a críticas ao período longo de transição na mudança?
A PEC 45 previa dois anos de teste e transição de oito anos. A 110 encurta a transição para cinco, sete no total. Sei que tem crítica, mas é muito arriscado fazer de forma mais rápida. Como muda muito um preço relativo, alguns setores vão pagar mais, outros menos. Sabemos que, no Brasil, quem tem aumento de custo repassa no curto prazo, quem tem alívio demora mais a repassar. Há risco de desequilíbrio. Depois, existem investimentos feitos com base em benefícios fiscais. Com a transição, essas empresas podem se ajustar. Se for muito rápido, pode ser um baque para a capacidade competitiva. O prazo na 110 é bem razoável. Menos, acho perigoso. O custo de ter transição longa é menor do que os riscos de não ter, inclusive porque pode gerar percepção negativa da reforma tributária.
Se o que já andou da mudança no IR é ruim, qual seria a melhor forma de retomar a reforma, começar tudo de novo?
A reforma da tributação sobre o consumo pode ser retomada tanto com a PEC 45 quanto com a 110. A mudança do IR, ou o governo aproveita o projeto que já está no Congresso e combina com o relator emendas para corrigir, ou apresenta um projeto novo. Em qualquer caso, faria muito sentido ter uma medida de desoneração da folha, sobretudo para a parcela do salário mínimo em todas as remunerações. Isso teria um efeito positivo sobre a formalização, o cresecimento e a distribuição de renda. Claro, precisa ver como financia. Uma alternativa seria a revogação de benefícios fiscais. O problema é que, por trás de cada benefício, tem algum interesse. Vai depender da capacidade de negociação. Como há benefícios muito grandes, isso pode gerar algum ganho de arrecadação, com taxação de dividendos, não muito.