Ao longo de 2022, economistas procuraram reforçar o debate racional das políticas públicas com livros reunindo diversas visões para tentar iluminar as ideias. Uma dessas obras foi Para Não Esquecer: Políticas Públicas que Empobrecem o Brasil - atenção ao verbo no presente -, organizada por Marcos Mendes, pesquisador do Insper, que já havia escrito outra referência, Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?. Graduado e mestre em Economia pela Universidade de Brasília e doutor em Economia pela Universidade de São Paulo (USP), Mendes tempera atuação acadêmica com passagens por Banco Central e Secretaria do Tesouro Nacional, além da assessoria técnica do Senado. De 2016 a 2018, chefiou a assessoria especial do Ministério da Fazenda.
Quais as três políticas públicas que empobrecem o Brasil que não podem ser repetidas?
Há muitas ainda em curso. É difícil escolher três, mas citaria todas as de subsídio a empresas. O Brasil optou por proteger empresas em vez de subsidiar a educação das pessoas. É curioso que seja bem-visto na esquerda, que deveria se preocupar com os pobres. Outra é o crescimento econômico baseado em mais investimento público. O verdadeiro decorre do aumento de capital humano e de boas condições para o investimento privado. Medidas de subsídio a crédito e aumento de gasto público para estimular a demanda tendem a produzir crescimento baixo e de curta duração. Em terceiro, política social à classe média. Tem de ser para os pobres. Há políticas supostamente para os pobres que não chegam lá, como o abono salarial. Outras acabaram gerando grandes distorções, como o MEI (registro de microempreendedor individual).
Quais distorções?
Muitos já estavam no mercado informal e pagavam a contribuição integral para a Previdência. Com o MEI, migraram para a mais barata, e a proposta não chegou às pessoas que deveria integrar. Temos de encontrar outros caminhos, com seguro de renda mais barato. Precisamos de uma reforma tributária que, entre outras dimensões, reduza o custo da contratação formal garantindo outras fontes de financiamento ao setor público.
Uma das características ruins do sistema brasileiro é a incidência em cascata. Como a indústria tem cadeia de produção longa, tem sobrecarga. No setor de serviços, a cadeia é curta, por isso há resistências à reforma.
Para retirar subsídios e regimes especiais, não é preciso antes uma reforma tributária?
Sim, é preciso fazer uma reforma tributária decente. A que está prevista nas PECs 110 e 45 vai ajudar muito a indústria. Uma das características ruins do sistema brasileiro é a incidência em cascata. Como a indústria tem cadeia de produção longa, tem sobrecarga. No setor de serviços, a cadeia é curta, por isso há resistências à reforma. Regimes especiais não são um alívio ou remendo. Ao contrário, aprofundam o problema. Um erro não corrige o outro, só aumenta distorções entre quem ficou mais protegido e os que não conseguiram. Os investimentos acabam indo para áreas em que se paga menos imposto, não onde há maior necessidade.
Por que, afinal, é tão difícil fazer reformas no Brasil, a tributária em especial?
Primeiro, porque geram resultado no médio prazo e custo no curto. Depois, quem teme perdas fica contra. E como há alta incerteza, quem não sabe se vai ganhar ou perder prefere um benefício a seu setor do que a todos. Em terceiro lugar, é uma reforma que precisa tempo de maturação. Foi o que ocorreu com a previdência, que só passou quando o debate estava maduro. Esse processo está acontecendo com reforma tributária. Sempre teve a oposição dos governos estaduais, que queriam ICMS para fazer guerra fiscal. Mas começaram a perceber que esse imposto está morrendo. As três grandes bases, energia, combustíveis e telecomunicações, estão arrecadando cada vez menos, porque há mudanças no padrão de consumo. E houve um golpe forte com a limitação de alíquotas. Agora, os governos perceberam que é vantajoso embarcar nesse processo. Resta a resistência do setor de serviços. Vai ter de haver negociação.
A tributária é a reforma mais importante?
É a mais viável. Em sendo eleito Lula, as pessoas que trabalham com reforma tributária estão fazendo boa articulação com o PT para levar essa agenda adiante. É a menos conflitante com o discurso eleitoral do Lula. Vai ser difícil fazer a administrativa porque tem suporte grande nos sindicatos de servidores públicos. Outra que deve sair é a reforma da política de transferência de renda, para ao menos voltar ao desenho do Bolsa Família, porque o Auxílio Brasil piorou muito a qualidade da distribuição desse dinheiro.
Os números da nossa situação fiscal melhoraram muito, com aumento de arrecadação e queda na relação entre dívida e PIB. Mas parte significativa dessa melhora decorre de fatores temporários.
Qual sua expectativa em relação a uma nova âncora fiscal?
Os números da nossa situação fiscal melhoraram muito, com aumento de arrecadação e queda na relação entre dívida e PIB. Mas parte significativa dessa melhora decorre de fatores temporários. A alta da inflação elevou o PIB nominal e, em consequência, ajuda a baixar a relação dívida/PIB. Também corrói despesa e aumenta a receita, que em boa parte vem do consumo. Os preços sobem, aumentam a arrecadação. Também vivemos um período de preços de commodities muito altos, que ajudam a inflar a receita. Quando a inflação e os preços de commodities caírem, esse quadro pintado como favorável vai ficar bem pior. O orçamento de 2023 terá de ser refeito, com base em despesas acima do teto de ao menos 1% do PIB, com o aumento adicional do Auxílio Brasil. Vai ter de ser feita uma repactuação fiscal. Mas se disser que não existe teto, o juro vai explodir, e o governo acaba antes de começar. Não se aceita mais outra âncora que não seja sobre a despesa. É muito melhor do que as baseadas em resultado primário ou limite de dívida. Pode ter variação, um teto mais flexível, incorporando mais despesas.
Não há uma meta de dívida em preparação no Ministério da Economia?
Isso foi muito mal comunicado. Há duas propostas no ministério de boa qualidade, que envolvem limites de despesas, cada uma com um parâmetro diferente. É bom que o próximo governo tenha mais de uma proposta para poder pensar. Lula pode querer repetir um erro do passado e ter regra fiscal só para constar. Mas agora sociedade e mercado estão vacinados, não vai ter sucesso.
É preciso aumentar muito a potência da política social, que consome R$ 300 bilhões. É dinheiro suficiente para fazer uma revolução.
Qual é o maior desafio econômico do próximo governo?
Manter a credibilidade da política fiscal, fazer andar a reforma tributária e lidar com polarização da sociedade para conseguir viabilizar reformas importantes nesse clima de alta temperatura. Tudo isso alinhado ao desafio de resgatar pessoas da pobreza. É preciso aumentar muito a potência da política social, que consome R$ 300 bilhões. É dinheiro suficiente para fazer uma revolução.
De onde vem esse valor?
O Auxílio Brasil, se for mantido em R$ 600, custa R$ 150 bilhões. Depois tem BPC (Benefício de Prestação Continuada), com R$ 76 bilhões, seguro-desemprego, R$ 40 bilhões, abono salarial, R$ 23 bilhões, salário-maternidade, R$ 4 bilhões, auxílio-gás, R$ 4 bilhões, seguro-defeso, R$ 3 bilhões, farmácia popular, R$ 2,5 bilhões, auxílio-reclusão, R$ 500 milhões (soma é R$ 303 bilhões).
Como os recursos do orçamento secreto se encaixam nesse cenário?
O valor é de quase R$ 20 bilhões, ou 0,2% do PIB, e contando as emendas individuais e de bancada, são quase outros R$ 20 bilhões, ou mais 0,2% do PIB. É muito dinheiro. Não só na dimensão do volume de recursos, mas pela baixa qualidade do gasto e na desforização (retirada de foro, ou seja, desvio de objetivo) do orçamento. O investimento vira moeda política e provoca desequilíbrio de poder. O Congresso passa a ter influência muito maior sem a devida responsabilidade. E o Executivo fica com muita despesa e se torna responsável pelas consequências negativas do que acontece. O ideal seria reverter todas as emendas. Isso é uma jabuticaba, não se vê nada semelhante nos Congressos de outros países, que definem os grandes rumos, se vai mais dinheiro para a educação ou a saúde, mas não a despesa no nível micro.