Quase duas semanas depois da revelação do site UOL de que 51 dos 107 imóveis negociados pela família do presidente e candidato a reeleição Jair Bolsonaro desde 1990 foram pagos, total ou parcialmente, com dinheiro vivo, ainda há confusão sobre a forma de pagamento. A coluna vai detalhar o que quer dizer "em espécie", ou seja, uso de notas de real, e "moeda corrente nacional", que é simplesmente uma forma de dizer que não houve moeda estrangeira no negócio - e pode envolver, inclusive, "dinheiro vivo".
Como muitos leitores não têm acesso ao UOL e expressam dúvidas, a coluna também vai detalhar partes do levantamento feito pelos jornalistas Thiago Herdy e Juliana Dal Piva que ajudam a entender a diferença.
Primeiro, "dinheiro vivo" ou "dinheiro em espécie" são formas de definir pagamento em notas e moedas. Era a forma mais usada para compras pequenas, de um cafezinho a um lanche. Com o crescente uso de cartões de crédito, o surgimento do Pix e até a pandemia (depois pegar em notas que circulam muito, é preciso higienizar as mãos), caiu ainda mais em desuso, como já ocorria em países mais desenvolvidos. Como descrevem agentes do mercado imobiliário, raramente se usa "dinheiro vivo" para quitar compras de imóveis, por envolver altos valores e, portanto, grandes volumes de cédulas, que precisam ser transportados com segurança.
Segundo, "moeda corrente nacional" é a expressão usada para qualquer transação feita, no caso do Brasil, em reais. A quitação pode ser em dinheiro vivo, cheque ou transferência bancária, inclusive eletrônica. Nesse caso, um pagamento em Pix, por exemplo, é uma operação em "moeda corrente nacional", por ser uma transferência bancária instantânea. Logo, qualquer outra operação que não seja em "moeda corrente nacional" terá de ser em dólares, euros, libras, pesos uruguaios ou qualquer outra moeda estrangeira.
Desde a primeira reportagem do UOL (clique aqui para conferir a original), foi especificado que pagamento em dinheiro vivo foi feito em 51 dos 107 imóveis comprados pela família (pais, irmãos, filhos e ex-mulheres), em valor de R$ 13,5 milhões (R$ 25,6 milhões atualizados pelo IPCA), conforme especificado em escrituras que detalham quantia "contada e achada certa", expressão usada para pagamento em espécie porque cheque ou transferência não se "conta e acha certo" (imagens abaixo).
Ainda conforme a reportagem, cheque ou transferência bancária foram usados para quitar 30 imóveis, com valor de R$ 13,4 milhões (R$ 17,9 milhões atualizados pelo IPCA). Os autores do levantamento fizeram questão de apontar que, em 26 imóveis, "não é possível saber a forma de pagamento" porque "esta informação não consta nos documentos de compra e venda". Essas aquisições somaram pagamentos de R$ 986 mil (R$ 1,99 milhão atualizados).
Parte da comprovação de pagamento em espécie vem de inquéritos policiais abertos para levantar a origem desses recursos, na maioria dos casos relacionados a Flávio e Eduardo Bolsonaro, investigados por envolvimento em apropriação de parte dos pagamentos dos funcionários de seus gabinetes, a chamada "rachadinha" (veja imagem abaixo). É bom lembrar, ainda, que a primeira reação de Bolsonaro não foi questionar que a quitação tivesse sido feita em notas de real: ao contrário, perguntou apenas "qual o problema em comprar com dinheiro vivo algum imóvel?".
A tese da "moeda corrente nacional" foi construída mais tarde e também abre interrogações: se 51 dos 107 imóveis tivessem sido pagos em "moeda corrente nacional", a quitação dos demais teria sido em dólares, euros, libras, pesos uruguaios ou outra moeda estrangeira? Não deve ser o caso. Leitores também criticam a falta de avanços na apuração do caso, então é bom lembrar que existe um pedido de investigação sob análise do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça.