Luiz Augusto de Castro Neves tem credencial tripla para avaliar o alcance e as consequências da crise da Evergrande, que voltou a provocar tremores no mercado nesta sexta-feira (24). Com menos intensidade do que na segunda-feira (20), a bolsa cai (0,8%) e o dólar sobe (0,75%, ambos por volta de 16h). Castro Neves tem formação acadêmica em Economia, com mestrado pelo University College, da Universidade de Londres, foi embaixador na China de 2004 a 2008, é presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). E conhece a atividade corporativa de dentro, com integrante do conselho de administração do Grupo Pão de Açúcar, onde preside o Comitê de Governança Corporativa e Sustentabilidade. Nessa entrevista à coluna, Castro Neves afirma que a China quer se tornar a maior economia do planeta por volta de 2030, e não vai deixar uma quebra de empresa ameaçar essa meta, nem a legitimidade dos dirigentes do país, que, como não são eleitos, é muito dada pela prosperidade.
Qual é o tamanho do problema?
É proporcional ao tamanho da Evergrande e da China. É a maior incorporadora imobiliária da China e, como ocorre com certa frequência nesse ramo, está em crise de default (calote).
É um evento Lehman?
Esse tipo de evento não se repete. O caso do Lehman já levou a uma reação coordenada, a partir da crise de 2008. Houve injeções de liquidez no mundo ocidental e inclusive na China, que evitaram que houvesse uma depressão econômica como a dos anos 1930.
É fundada a preocupação de que o governo chinês demore a agir para fazer da Evergrande um exemplo e desestimular o excesso de endividamento?
É possível prever, até porque já ocorreu em situações anteriores, que o Estado chinês, que é por definição um grande interventor no funcionamento da economia, vá atuar pesadamente para salvar, sobretudo, o funcionamento da economia, não necessariamente a empresa.
Em casos anteriores, o governo chinês interveio, mas estatizou a empresa socorrida. Esse pode ser o desfecho?
Pode ser um caminho. Foi o utilizado pelos Estados Unidos, quando a crise de 2008 afetou a indústria automotiva americana. Os CEOS de Ford, GM e Chrysler foram pedir ajuda e o governo americano estatizou essas empresas. Depois, privatizou de novo e acabou até ganhando dinheiro no processo.
A decisão sobre a Evergrande passa pelo novo modelo de crescimento da China?
Em 35 anos, o crescimento chinês foi baseado na locomotiva da exportação, do investimento estatal e da abertura da economia. A partir de 2008, tudo se tornou mais instável. A crise mundial mostrou que esse modelo depende da boa vontade dos compradores. Houve retração da demanda. O governo chinês passou a pensar em mudar de estratégia, valorizar mais o mercado interno, até por questões políticas. A prosperidade baseada nas exportações acabou criando um diferencial de renda entre os grandes centros urbanos e o interior do país. Agora, a ênfase do crescimento no mercado interno é capaz de manter o nível de emprego e a satisfação da população com seu governo. Por isso há interesse em tornar a China menos dependente da economia mundial.
Qual é o objetivo dessa estratégia?
O que estamos vendo, no plano geoestratégico, é um delineamento da nova ordem econômica mundial. O governo chinês quer manter o ritmo de crescimento que permitirá, em sete ou oito anos, que a China seja a maior economia do mundo. Por volta de 2030, ultrapassarão os Estados Unidos como a maior economia do mundo.
Quais as consequências para o Brasil se a China desacelerar?
Na medida em que a economia chinesa tiver um freio de arrumação, principalmente na construção civil, que vai diminuir o ritmo por algum tempo, haverá impacto na importação de minério de ferro. Vamos exportar menos. A economia brasileira já está crescendo pouco. A queda nas exportações seria um prejuízo a mais. A situação do Brasil está instável e precária, por razões não relacionadas à China, com aumento do IOF, desafio ao teto de gastos, Auxílio Brasil, precatórios.
Há risco também de redução de importação de soja?
Os produtos alimentares provavelmente vão sofrer menos. Os alimentos têm inelasticidade da demanda (variam pouco com maior ou menor crescimento do PIB) muito grande. As pessoas e os animais têm de comer. Pode sofrer algo, mas acredito que sofra bem menos do que o minério de ferro.
Quanto a desaceleração da China pode complicar a recuperação da economia nacional?
Depende das medidas tomadas para preservar a economia brasileira. Essas flutuações são inevitáveis, sobretudo no mundo globalizado. Problemas em grandes economias sempre produzem impacto nas demais.
O que poderia ser feito?
A primeira coisa seria uma reforma do Estado, que gasta muito e mal. Temos um problema quase estrutural de contas públicas precárias. Toda vez que há turbulência internacional, balançamos. Isso que hoje está bem melhor. Nos anos 1980, durante a crise da dívida externa, ficamos sem dólares. Hoje temos reservas robustas, mas o câmbio segue supervolátil porque ainda há problemas estruturais não resolvidos.
A dificuldade de dimensionar o problema não aumenta com a falta de transparência da China?
Quem se habitua a acompanhar a China consegue ler nas entrelinhas o que pode acontecer. Agora, por exemplo, interessada em manter sua economia em expansão, a China é a menos interessada em turbulências mundiais. Também quer evitar ondas internas de descontentamento. A pior coisa para um país como a China, que não é uma democracia nos moldes ocidentais, é uma crise econômica. O governo chinês tem legitimidade que, muitas vezes, é fruto do sucesso econômico. Hoje a população chinesa tem níveis de prosperidade que nunca teve na vida, e isso é um instrumento de legitimação dos dirigentes chinesas.