Economista com doutorado em Cambridge, Eduardo Giannetti da Fonseca também explora os caminhos da filosofia para entender, e ajudar a explicar, a vida contemporânea. Ex-assessor do partido Rede Sustentabilidade, formulou planos de desenvolvimento para Marina Silva, inclusive em 2018. Na semana passada, abriu o Congregarh, evento da ABRH-RS, quando falou sobre relações humanas com base em seu livro mais recente, O Anel de Giges – Uma Fantasia Ética. Pouco antes, deu entrevista à coluna. O personagem do título tem um anel que, ao ser girado, confere invisibilidade a quem o usa. A obra se dedica a indagar o que cada um de nós – o autor, inclusive – faria livre de qualquer freio legal e civilizatório. Qualquer semelhança com O Senhor dos Anéis, segundo Giannetti, é mera coincidência: a base de seu livro é um personagem citado em A República, de Platão. Ele nunca leu J.J.R. Tolkien, mas suspeita que a fonte seja a mesma, embora os livros do britânico passem pela mitologia nórdica:
– Estudo filosofia há 40 anos. Se começar a cavar, tudo remete a Platão. Costuma-se dizer que a história da Filosofia é uma sucessão de notas de rodapé a Platão. É uma frase jocosa, mas tem fundo de verdade.
No mundo da pós-verdade, já não é possível fazer o que se quer, com muita visibilidade, e depois dizer que o registro do feito foi fake news?
O mundo digital permitiu que aflorasse toda uma camada de ressentimento, de ódio, que no passado não tinha como se expressar. Dá certa impunidade, que tem sido usada e abusada de todas as maneiras, com gravíssimas consequências. Não concebo fenômenos políticos de direita populista, como Trump e Bolsonaro, sem as mídias sociais. O surgimento das redes não explica totalmente fenômenos como esses, mas é razoável argumentar que os viabiliza. Na República de Weimar (regime anterior ao nazismo), o primeiro político a perceber a importância do rádio e do cinema, as mídias sociais da época, foi Hitler. Manipulou a opinião pública por meio do rádio e do cinema, contratou cineastas, (Joseph) Goebbels estudou encenação, cenografia, até tom de voz, para ajudar a criar um impacto gravíssimo. E Hitler chegou ao poder pela via eleitoral.
É parte, mas não explica tudo?
Como é um fenômeno complexo, não se pode dizer que grande parcela entrou em uma aventura desse tipo só pela manipulação. Alguns fatos que não ocorrem apenas no Brasil devem ser lembrados. A incorporação de centenas de milhões de asiáticos ao mercado de trabalho teve efeito devastador na classe trabalhadora das democracias ocidentais, diante da competição de pessoas muito disciplinadas, que aceitam ganhar muito menos. A crise financeira de 2008 e 2009 trouxe uma assimetria injustificável no sistema econômico. Enquanto o mundo das grandes finanças ganhava centenas de bilhões de dólares, discutir o compartilhamento dessa riqueza era um tabu. Quando derreteu, os governos tiveram de assumir e socializar as perdas pela via do endividamento público. Isso desmoralizou a regra da economia de mercado. A Grande Depressão dos anos 1930 foi o pano de fundo do movimento nazista. Mas foram as novas tecnologias que permitiram o afloramento do rancor, do ressentimento, e deram impunidade a quem quer pôr fogo no circo.
As redes têm poder de atração que provoca quase um transtorno, com aspecto que é o caráter viciante no uso dessas tecnologias.
Estudar o anel de Giges era um interesse antigo seu, mas por que escolheu este momento?
Estou há 40 anos com radar acesso nesse tema. A decisão de encarar agora veio do processo vivido pelo Brasil na Operação Lava-Jato. Foi algo inédito, com revelações, baseadas em provas, do modus operandi da política brasileira. O que a Lava-Jato revelou vem transcorrendo no Brasil desde sempre. Mas nunca foi tão claro, tão inequívoco. A Lava-Jato mostrou que é como câncer, o mais perigoso é o que fica oculto por muito tempo. O melhor é enfrentar cedo, por mais doloroso e desagradável que seja. Vi a Lava-Jato com muita esperança, achei que poderia ser um divisor de águas. Hoje, percebo que me iludi. Era um pensamento desejoso. Não houve desdobramento. Perdemos uma oportunidade rara de melhorar a qualidade da governança e dos procedimentos da política brasileira.
Tive grande desapontamento com os procedimentos do juiz (Sergio) Moro e do Ministério Público, que, em nome do sentimento de Justiça, estavam atropelando a Justiça.
Ficamos com o ônus e sem o bônus da Lava-Jato?
Foi um grande desapontamento que tenha terminado como terminou. Também tive grande desapontamento com os procedimentos do juiz (Sergio) Moro e do Ministério Público, que, em nome do sentimento de Justiça, estavam atropelando a Justiça. No fundo, usaram o anel de Giges para fazer justiça a seu modo, sem o cuidado de respeitar o caminho da legalidade e dos processos judiciais legítimos.
Falar do anel de Giges agora passa ainda pelo debate sobre alcance e limite da liberdade?
O poeta alemão Goethe escreveu que a liberdade sem freio se autodestrói. É uma colocação que inspira muito o que está no Giges: toda a emancipação do espírito é perniciosa se não for acompanhada de maior autocontrole. Seria muito ingênuo imaginar que uma sociedade complexa como a moderna possa prescindir de arcabouço de leis amplamente reconhecido e respeitado pela maioria. É muito irrealista imaginar que poderíamos viver em mundo em que cada um faz o que bem entende sem o mínimo acordo de regras de convivência, sem sistemas ancorados em normas. Na ausência de normas, a liberdade se torna uma caricatura. Não foi possível construir no país um acordo robusto de comportamento, condutas, respeito a normas que deveria presidir ações de todos.
O governo Bolsonaro está completamente de joelhos, depende de acordos escusos com o que há de mais podre na política brasileira.
Como é possível reconstruir esse acordo robusto?
Não vejo outro caminho que não passe pelo processo político-eleitoral. Temos de construir alternativas. recuperar a legitimidade da representação popular no Brasil. A sociedade não se sente representada por aqueles que estão no Congresso e no Executivo. Esse ressentimento, essa frustração, levou o eleitor a buscar um outsider. Marina esteve muito perto de ser esse outsider. Só não venceu porque foi brutalmente atacada pelo poder incumbente na época, o do PT. A mesma onda acabou descambando para a eleição de Bolsonaro, que se elegeu em nome de uma nova política mesmo sendo egresso da política de 30 anos no Congresso. O governo Bolsonaro hoje está completamente de joelhos, depende de acordos escusos com o que há de mais podre na política brasileira.
A economia é um fator da eleição, como vê 2022?
O cenário para 2022 é tudo, menos auspicioso. Temos inflação alta, que obrigou o Banco Central a começar um aperto na política monetária. Isso vai levar a um resfriamento da perspectiva de crescimento. Temos 14 milhões de desempregados, sem falar da precarização e da informalidade. A incerteza política criou muita insegurança em relação ao futuro, o que inibe novos investimentos. O governo Bolsonaro não dá qualquer mostra de ter capacidade, foco e discernimento para fazer reformas e tornar a economia menos disfuncional, como a tributária e a administrativa. Esse cenário econômico vai impactar a eleição de 2022. É um dos elementos que pode abrir espaço para uma candidatura que fuja da polarização raivosa entre Bolsonaro e Lula. O desejo da grande maioria é evitar, em 2022, a repetição do quadro polarizado de 2018.
Cada um se sente muito diferente e acima 'disso tudo que aí está'. Mas todos nós, juntos, somos exatamente 'isso que aí está'.
Seu livro cita um estudo sobre "comportamento de invisibilidade" aplicado a carteiras perdidas. O que foi possível concluir?
Foram experimentos muito amplos, em vários países, sobre o que faziam pessoas ao encontrar carteiras perdidas em situação de total impunidade. Podiam escolher se devolviam ou não. Foram devolvidas mais carteiras que tinham algum dinheiro do que as que não tinham nenhum. Em outro, foi maior a devolução das que tinham mais dinheiro do que a das que tinham só algum. A proporção de devolução aumentou com mais dinheiro, exatamente o contrário do que a economia tradicional define. Isso remete ao tema do paradoxo do brasileiro. Cada um se sente muito diferente e acima 'disso tudo que aí está'. Mas todos nós, juntos, somos exatamente 'isso que aí está'. Cada um acha que merece a confiança dos demais, mas a ampla maioria diz que os brasileiros em geral não são dignos de confiança. As duas coisas não podem ser verdade ao mesmo tempo. O todo é menor do que a soma das partes. Ninguém se enxerga naquilo que condena socialmente. Cada um tem olhos de lince para as falhas dos demais e um ponto cego para seus próprios erros e problemas. Vi isso com meus alunos na sala de aula. A mesma classe que pedia ética na política e protestava contra a corrupção colava na prova de final de ano. Não ligam os fios, não percebem que o que fazem na sala de aula é rigorosamente o que estão condenando. O Brasil é o outro.
É hipocrisia ou autoengano?
Predominantemente autoengano. As pessoas sinceramente se acreditam distintas do que veem de errado a seu redor. Conseguem ficar cegas e invisíveis, giram o anel para si mesmas. Ao colar na prova, o aluno não reconhece, no seu ato, tudo o que condena fora. Ocorre o mesmo com o racismo. As pessoas sinceramente acreditam não serem racistas e não veem suas práticas racistas. O autoengano é um elemento de autoinvisibidade. Somos exímios na construção de narrativas que nos sejam favoráveis e nos reconfortem.
Só se conserta com educação?
Educação contribui, desde que se lembre que não se trata só de educação formal, mas na família e no convívio social. É preciso internalizar o respeito a normas. E a formação de do entendimento moral se dá, provavelmente, mais no âmbito da convivência familiar do que no aprendizado formal escolar.