Nos 14 meses marcados pela pandemia no Brasil, discursos e intenções foram desafiados. A ambição de obter impacto social passou a ser imposição diante de uma pandemia mal administrada, para ficar no diagnóstico objetivo. Um dos nomes que reforçaram seu papel foi o de Edu Lyra, fundador da organização não governamental Gerando Falcões. De cartões de alimentação a cestas básicas, a ONG compareceu para cumprir sua missão: "Erguer pontes de oportunidades entre a periferia e o centro e mandar a atual desigualdade social pro museu". O maior doador da Gerando Falcões é ninguém menos do que Jorge Paulo Lemann, brasileiro mais rico, que desafia a alcançar altas somas para doar o dobro da quantia. Edu descreve a relação como de "amizade". Nesta entrevista, Edu avalia que o Brasil perdeu a grande oportunidade da crise e que os brasileiros precisam fazer uma "assinatura de longo prazo" com o país.
Como está a volta às ruas da Gerando Falcões em 2021, com o projeto Panela Cheia?
O Panela Cheia é coalizão de três organizações, a Gerando Falcões, a Cufa e a Frente Nacional Antirracista, com a apoio do União SP e da Unesco. A ideia é passar a mensagem de que ou a gente se junta ou não sai do outro lado do labirinto. Precisamos construir acordos sociais para fazer essa travessia, que tem sido dolorosa. Quando mais nos unirmos, mais gente vamos salvar. No Brasil, 20 milhões passam fome, mas a insegurança alimentar afeta quase 120 milhões. Tem um Brasil que come de forma sustentável, regular, outro que come de forma irregular. É preciso unir todos os níveis de governo, instituições sociais e iniciativa privada. Só a Gerando Falcões arrecadou R$ 44 milhões em 2021, o que permite alimentar 746 mil pessoas em todo o Brasil. O valor chama atenção porque vem de doações de empresas, como XP, Gerdau, Accenture, Google, e soma 90 mil doações de pessoas físicas. É um número gigantesco para a realidade da filantropia no Brasil.
Com a pandemia, ficou claro que essa realidade tem de mudar?
O Brasil não é uma nação desenvolvida em muitos sentidos, e um deles é o da filantropia. No Brasil, os mais pobres doam mais do que os ricos, em proporção da renda. E é um país que não doa a longo prazo. Esse é o grande problema. É preciso criar assinaturas sociais, como Netflix, Amazon. Ter uma assinatura de confiança para entregar contribuição social. O que se entrega para capacitar jovens gera muita renda e ajuda a tornar o país mais potente economicamente. O brasileiro precisa fazer uma assinatura de longo prazo com o país, senão ficaremos sempre na atuação emergencial, sempre reagindo a urgências.
Fica algum saldo?
O do conhecimento. As pessoas se deram conta de que vivemos em um país amplamente desigual. Não dá mais para fechar vidro do carro com insufilme para não ver. A conta chegou, e vai chegar ainda mais. Repetindo o que fizemos até agora, corremos o risco de inviabilizar o planeta, social e ambientalmente. Elon Musk quer colonizar Marte, mas não quero viver esperando que ele me dê uma cota. O problema da Amazônia, quem vai resolver são os americanos. Quero resolver o problema de desigualdade com os brasileiros. Não podemos delegar nossos problemas para o Biden. Fomos nós que criamos. A desigualdade não nasce sozinha. Tem de desligar essa máquina e construir outra que permita a emancipação social das famílias. E não é só uma decisão moral e ética que todos temos de tomar. Se não decidirmos e não resolvermos, a conta vai ser paga nas próximas gerações. Estamos criando filhos que vão receber uma carga muito pesada.
É possível fazer isso?
A sociedade deve fazer uso da plena cidadania, promover um grande acordo social, com ONGs, iniciativa privada, governo, igrejas, todos. Precisamos definir os 10 problemas que queremos resolver até o fim desta década e trabalhar todos em torno dessa grande agenda, desdobrada em metas ambiciosas.
Por que a Gerando Falcões replica conceitos empresariais, com o do "grande sonho" e de metas ambiciosas?
Há problemas gigantescos no Brasil. Com metas, você diminui marco de tempo para obter resultados. Segundo a OCDE, quem nasce pobre no Brasil levaria até nove gerações para conseguir chegar a uma vida desenvolvida. É tempo demais para esperar. O plano é fazer essa travessia social em tempo menor, e não baseada em exceções, como a minha história. Tive um pai bandido, que visitava na cadeia. Mas o Brasil não pode viver de exceções. Precisamos construir um ambiente adequado. Temos a responsabilidade de construir oportunidades. Não existem empresas vitoriosas em um país fracassado.
Como foi a sua aproximação com o universo empresarial que apoia a Gerando Falcões?
Quando comecei a empreender na favela, sabia que produziria pouco impacto ficando ilhado nela. Quando tentei fazer a transição, percebi que o muro social era muito grande. Não bastava fazer um furo, era preciso derrubar o muro e construir pontes para conectar a favela à Faria Lima. Quanto mais muro, mais desigualdade. Agora, estamos constituindo um funding em dólar em Nova York.
Como surgiu a ideia?
Foi uma provocação do Lemann (Jorge Paulo, dono da Ambev/Inbev e brasileiro mais rico). Ele me disse 'Edu, o próximo passo do sonho grande é internacionalizar a Gerando Falcões'. Precisamos cuidar da próxima fronteira, para além do combate à fome. A gente não quer ficar dando cesta básica a vida inteira. Em São José do Rio Preto, começamos o projeto que chamamos de 3D, de vida digital, digna e desenvolvida. Nesse território, fazemos intervenções sistêmicas de programas sociais e políticas públicas que passam por educação, saúde, acesso a financiamento, capacitação profissional, tudo para gerar renda para interromper o ciclo de pobreza na favela. É um projeto viável e escalável, para colocar a pobreza na favela no museu. As forças armadas dos EUA estão investindo US$ 160 bilhões no conhecimento para chegar a Marte. Tem de inaugurar uma corrida social no Brasil, medir as empresas não só pela riqueza que gera, mas pela igualdade social que gera. Não podemos passar sem entregar isso ao Brasil, Isso humilha e depõe contra todos nós.
Qual é sua relação com Lemann?
De amizade. Bancou um curso de 15 dias em Harvard, já o levei à favela para uma jornada de aprendizagem social. Ele é um doador, mas mais do que isso, um cara que me faz sonhar grande. um estimulador. É o maior treinador de gente.
É viável construir pontes em ambiente tão polarizado?
É desafiador. A polarização só faz a gente perder. Poucos lucram com isso, o Brasil tem de entender isso. O Brasil perdeu sua maior oportunidade nessa crise, a de juntar a nação, ao menos emocionalmente. Poderíamos estar distantes fisicamente mas conectados por um objetivo, uma visão. Perdemos essa chance. Precisamos encontrar pessoas que querem que o Brasil ande para a frente. A polarização não faz sair do atoleiro. Ainda estamos no século 19, e não é a polarização que vai nos fazer completar a travessia. Líderes se provam na crise e temos a maior crise moderna, possivelmente a maior das nossas vidas. É preciso que cidadãos, governo, sociedade civil, elaborem um Plano Marshall.
É factível esperar que o governo Bolsonaro se comprometa com isso?
Vejo um governo que está distante disso. Precisa oxigenar, conectar-se com a democracia social, apresentar um plano ao Brasil. É preciso reforçar a infraestrutura, os pequenos empreendedores. É preciso mais ajuda emergencial, a fome segue presente. A chegada da ajuda emergencial é muito lenta, a ponto de as pessoas morrerem. Precisamos um Plano Marshall tropicalizado. A nossa concepção de metas ainda está baseada no período antes da grande crise. Não dá para defender o status quo diante da crise. É preciso desafiar o modelo mental, colocar o pobre no centro das decisões. Se não, vamos para o último lugar da fila.
Quando o governo falou em Plano Marshall, houve grande polêmica. O que seria, na sua concepção?
Colocar o pobre no centro das decisões de governo, no centro do orçamento público, com um programa de habitação, apoio a pequenos empreendedores, que fazem a economia da última milha girar, revitalizar as favelas, zerar o gap digital, garantir acesso a wi-fi. Com territórios plataformizados que possam se conectar a outras plataformas, de mobilidade, logística.