O jornalista Leonardo Vieceli colabora com a colunista Marta Sfredo, titular deste espaço.
O Mercosul pode ter papel importante na retomada econômica da América do Sul no pós-pandemia de coronavírus. Para isso, é necessário que Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai consigam reformar o bloco, avalia o diplomata José Botafogo Gonçalves, ex-embaixador brasileiro em Buenos Aires. Na semana passada, o Mercosul teve o primeiro encontro de líderes, mesmo que virtual, envolvendo Jair Bolsonaro e Alberto Fernández. Os presidentes de Brasil e Argentina colecionam troca de farpas desde o ano passado.
Como o senhor avalia o primeiro encontro do Mercosul com Bolsonaro e Fernández?
O continente sul-americano está se dando conta de que o mundo mudou. A economia não pode ser mais definida sob ângulo puramente nacionalista. A geografia faz com que Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai façam parte de um mesmo contexto. Esse contexto tem grande impacto, não só no desenvolvimento interno, mas nas relações internacionais. Por causa de crises anteriores à pandemia, os modelos econômicos que impulsionaram o crescimento da América do Sul se esgotaram. No caso do Brasil, o de substituição de importações não dá mais conta do recado. Foi muito bem-sucedido. Não fracassou. Mas uma coisa bem-sucedida também termina. O Brasil está se dando conta disso, com muito sacrifício e muita dificuldade.
O ponto central é a abertura da economia para o resto do mundo. Acho que o Brasil está no caminho certo para abrir sua economia, seja com vizinhos ou países distantes. O Paraguai e o Uruguai têm esse desejo há tempo. Hoje, quem está resistindo a essa filosofia é a Argentina, por razões de política interna. O que está acontecendo com a Argentina hoje é o que aconteceu com o Brasil durante a era Lula. O Fernández não está preparado para participar da abertura. É o que deduzo da reunião do Mercosul.
Como superar as divergências?
Tem de haver um grande movimento acadêmico e de entidades governamentais e empresariais, tanto no Brasil quanto na Argentina, para propor mudanças nas políticas públicas, tanto aqui quanto lá. A única saída é reformar o Mercosul. Não adianta deixá-lo como um clube protecionista. O Mercosul é uma boa ideia, mas foi montado dentro de visões protecionistas. É preciso ter discussões para convencer o pensamento argentino de que precisa abrir sua economia. A melhor maneira de fazer isso é buscar a implementação do acordo entre Mercosul e União Europeia.
A divergência entre Bolsonaro e Fernández não ajuda. É um dado objetivo. Qual é a maneira de superar isso? É mobilizar o mundo acadêmico e empresarial, sobretudo na área do agronegócio. Brasil e Argentina são dois potentes promotores das exportações de alimentos. É por aí que os países devem procurar o caminho da conciliação.
Qual será o papel do Mercosul no pós-pandemia?
Se os quatro países do bloco tiverem capacidade de transformá-lo, em um processo de integração de cadeias produtivas, o Mercosul será fundamental, não só para a recuperação da economia brasileira, mas da América do Sul em geral. Se fracassarem nessa hipótese, o bloco ficará como um instrumento marginal.
A turbulência ambiental vivida pelo Brasil traz risco ao avanço do acordo entre Mercosul e União Europeia?
Em relação a questões ambientais e Amazônia, o Brasil tem de fazer uma campanha mais organizada para explicar suas políticas e corrigir seus defeitos. Não há dúvida nenhuma de que as declarações do presidente Bolsonaro contra o Acordo de Paris, por exemplo, causaram grande dano à imagem do país. O Brasil tem de mudar o discurso em relação ao meio ambiente. E, evidentemente, tem de melhorar a performance.
Agricultores europeus vão se aproveitar da má fama do Brasil na área do meio ambiente para objetar o acordo do Mercosul e da União Europeia. Eles sabem que, em condições normais de competição, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai são muito mais eficientes na exportação de alimentos. O que está havendo é um ressurgimento do protecionismo agrícola europeu. Está muito arraigado, muito profundo. Não tenho dúvida de que os fatos vão mostrar que a capacidade do Mercosul de produzir alimentos para o resto do mundo vai acabar prevalecendo sobre atitudes protecionistas.