A política ambiental do governo Jair Bolsonaro voltou a virar combustível para debates acalorados na pandemia. Recentes declarações do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, serviram para reforçar divergências entre organizações não governamentais e entidades empresariais no país. Na visão de parte dos analistas, a turbulência traz riscos à imagem brasileira, podendo impactar exportações e investimentos estrangeiros. Outra parcela demonstra preocupação com o futuro, mas não vê grandes ameaças aos negócios neste momento.
A tensão ganhou novo capítulo em 22 de maio, quando foi divulgado o conteúdo de reunião ministerial ocorrida no mês anterior, dentro do inquérito que apura se houve interferência do presidente na Polícia Federal. No encontro, Salles disse que o governo deveria aproveitar o momento em que a atenção da imprensa estava voltada ao coronavírus para "ir passando a boiada".
A intenção seria alterar regras por meio de "reformas infralegais" – a expressão pode incluir portarias e instruções normativas. Segundo o ministro, as medidas buscariam reduzir a burocracia que ameaça projetos no país.
De fato, o governo promoveu mudanças desde então. Em meados de maio, por exemplo, foi confirmada a reestruturação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O Ministério do Meio Ambiente também alterou legislação sobre a Mata Atlântica, medida que foi revogada neste mês (veja mais detalhes abaixo).
Consultor de investidores internacionais, o economista Claudio Frischtak, sócio-gestor da Inter.B, sinaliza que a tensão pode gerar restrições a produtos nacionais:
– Pela primeira vez, em reuniões com investidores, a pergunta inicial sobre o Brasil é relacionada ao meio ambiente. Há problema na gestão governamental. Pode afetar os produtores agrícolas, que não têm a ver com isso.
Presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro menciona que o interesse pela preservação do ambiente vem crescendo mundo afora. Assim, considera que a turbulência provoca preocupação. Por outro lado, no comércio internacional, há dificuldade para encontrar fornecedores alternativos em alguns segmentos, o que pode amenizar eventuais impactos econômicos, pondera Castro:
– Quais seriam os fornecedores alternativos de soja? Só tem Brasil e Estados Unidos.
Anúncios com crítica e apoio
A divulgação das declarações de Salles também deu início a uma batalha de discursos. Em 24 de maio, organizações ambientais como o Greenpeace publicaram anúncios na imprensa com o texto: "para o ministro do Meio Ambiente, mais de 20 mil mortos são oportunidade".
– A fala foi desumana e desrespeitosa. A política do governo é voltada ao desmantelamento dos órgãos com competência para fazer a proteção ambiental – diz a porta-voz da campanha de políticas públicas do Greenpeace, Luiza Lima.
Na sequência, cerca de 80 entidades empresariais rebateram com outro anúncio, intitulado "No meio ambiente, a burocracia também devasta". O texto não citou o nome de Salles, mas manifestou apoio ao seu ministério. Na ocasião, as entidades condenaram a "agenda burocrática que utiliza a bandeira ambiental para travamento de atividades econômicas". A campanha reuniu representantes do agronegócio, da indústria e do setor de serviços.
Presidente da comissão de meio ambiente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), uma das integrantes do movimento, Nilson Sarti menciona que a ação buscou sublinhar a necessidade de avanço no combate à burocracia, mas sem descuidar da natureza.
Para o dirigente, o "mal-estar" causado pela divulgação "fora de contexto" das declarações de Salles pode ficar para trás com o andamento de projetos no Congresso. Sarti cita dois que estavam em discussão antes da covid-19: a nova lei de licenciamento ambiental e o marco regulatório do saneamento básico.
– Precisamos de regras claras, que tragam previsibilidade e segurança jurídica – diz Sarti.
GaúchaZH contatou o Ministério do Meio Ambiente, que não deu retorno. Em maio, Salles publicou em rede social: "Sempre defendi desburocratizar e simplificar normas, em todas as áreas, com bom senso e tudo dentro da lei".
Mudanças de regras desde abril
Veja resumo das mudanças promovidas pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, nos últimos dois meses
Mata Atlântica
Em abril, o ministro assinou despacho que alterou regras em vigor para a Mata Atlântica. À época, Salles levou em conta parecer da Advocacia-Geral da União (AGU). O órgão reconheceu como áreas consolidadas as áreas de preservação permanentes ocupadas no bioma até julho de 2008. Na prática, multas poderiam ser canceladas com a decisão.
O Ministério Público Federal (MPF) questionou o despacho. Diante da repercussão, Salles afirmou, na última quinta-feira, que decidiu revogá-lo.
Por trás do debate, há impasse jurídico sobre o regramento que deve valer para a Mata Atlântica. O parecer da AGU considerava que, no bioma, deveriam ser aplicadas as normas do Código Florestal de 2012, que pode perdoar infrações por desmatamento até julho de 2008. Contudo, antes, havia regra específica para a Mata Atlântica, de 2006, com caráter mais restritivo. Em 2017, o então ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, reconheceu a prevalência dessa regra de 2006, e não do Código Florestal.
A tentativa de mudança, autorizada por Salles, dividiu opiniões. Ambientalistas criticaram a medida, temendo riscos à preservação do bioma. Já a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil demonstrou apoio ao ministro. Em abril, a entidade afirmou que a aplicação do Código Florestal trazia "segurança jurídica" aos produtores rurais.
Na reunião ministerial de 22 de abril, Salles disse que o despacho atendia a "pedido do Ministério da Agricultura". Agora, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve avaliar o assunto
Reformulação no ICMBio
Em meados de maio, o Ministério do Meio Ambiente publicou no Diário Oficial da União portaria que substituiu as 11 coordenações do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por cinco gerências regionais. As mudanças aumentaram o poder militar dentro do órgão. Quatro das cinco gerências passaram a ser comandadas por nomes ligados a essa ala. O ICMBio é responsável pelas unidades de conservação federais, como parques, florestas e reservas extrativistas.
Trocas no Ibama
Salles assinou em abril a exoneração do diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo. Dias antes, o órgão havia realizado operação contra garimpeiros no Pará. O Ministério do Ambiente informou à época que a saída do diretor foi tomada em comum acordo. Outros dois servidores foram exonerados na sequência.
O Ministério Público Federal, por sua vez, prometeu investigar o caso. Em maio, o presidente Jair Bolsonaro decretou operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para combater crimes ambientais na Amazônia. O decreto definiu que Ibama e ICMBio ficam subordinados às Forças Armadas nas operações durante o período de GLO.