Como interlocutor de tratativas em duas crises de comércio internacional – outra sobre aço, no governo, e contra subsídios americanos ao algodão na iniciativa privada – Roberto Giannetti da Fonseca, ex-secretário executivo da Câmara de Comércio Exterior e presidente da consultoria Kaduna avalia que só uma negociação eficiente pode ajudar o Brasil. O país ficou na incômoda posição de maior prejudicado pela adoção de tarifa de importação de 25% sobre o aço, de forma unilateral, pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Como o maior exportador de aço aos EUA é o Canadá, que terá isenção da sobretaxa, como segundo maior fornecedor o Brasil tende a ser o mais prejudicado?
O Brasil é o principal prejudicado em termos de valor e volume. E injustamente. O presidente Trump fez um discurso muito confuso e contraditório, para variar. Falou em dumping (venda por preço abaixo do valor de mercado). Isso nada tem a ver com o Brasil, que não tem qualquer acusação de dumping nos EUA. 80% da nossa exportação para lá é de produtos semiacabados. São placas usadas para fazer a laminação de produtos que, depois, são usados nas indústrias siderúrgicas, automobilísticas, de eletrodomésticos e de máquinas e equipamentos, entre outras. O Brasil é fornecedor de insumo intermediário. A indústria siderúrgica de laminação nos EUA compra para poder fazer as chapas vendidas à indústria automotiva. Se tirar ou encarecer esse fornecimento de placas para os EUA, vai encarecer os produtos finais, como automóveis, geladeiras, fogões.Se vai encarecer os bens finais americanos, os EUA não vão perder mais emprego na indústria de transformação do que vão ganhar na siderurgia? É um tiro no pé, não faz o menor sentido.
O fato de fornecer semiacabados pode beneficiar o Brasil em eventual negociação?
Esse episódio é um flashback. No início dos anos 2000, no governo George W. Bush, eu era secretário executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e houve tentativa de impor salvaguarda, um imposto em determinado setor sobre todos os países exportadores. Usar salvaguarda serve para recuperar um segmento da indústria, por três ou cincos anos, fazer atualização tecnológica, por exemplo. Está previsto na OMC (Organização Mundial do Comércio). Na época, dissemos ao governo americano que as placas tinham de ficar fora. Argumentamos que não havia expectativa de reativar altos fornos nos EUA. Se a intenção era fazer a indústria de laminação, que produz as bobinas e as chapas, voltar a funcionar de maneira competitiva, precisava do aço brasileiro. Para nossa boa surpresa na época, eles acataram, e as placas foram isentas de imposto. Tem de olhar esse exemplo e fazer a mesma coisa. Tem de tirar as placas do protecionismo. A siderurgia primária, que é a dos altos fornos, eles não vão recuperar. É quase impossível, seja por questões competitivas, ambientais, de integração produtiva. Eles já não têm mais altos fornos para fornecer o suficiente para a economia americana, vão ter importar de qualquer maneira. E se tiverem de comprar fora, porque não sem imposto, para tornar a indústria seguinte mais competitiva. Temos de pedir um mínimo de lógica ao governo americano. É por isso que o assessor econômico (Gary Cohn) pediu demissão, não tem lógica no que estão fazendo.
A posição dúbia do governo brasileiro é cautela ou timidez diante do potencial de dano?
O Brasil tem de dar um exemplo de legalidade, não de atitude intempestiva. E legalidade é ir à OMC. Houve medida ilegal por parte dos EUA, vamos reclamar para o órgão do comércio mundial. Pode pedir um fast track (via rápida), um julgamento liminar, dizendo que os EUA estão errados, porque obviamente estão errados, e o Brasil ganhar direito de retaliação. Mas pergunto: o que ganhamos com isso? Infelizmente, a pena para quem adota ato ilegal no comércio internacional é contraditória. Se vamos retaliar, deixar de comprar tratores da Caterpillar, motos da Harley-Davidson ou software da Microsoft, quem perde com isso? O Brasil. Se compramos, é porque gostamos, seja do design, da qualidade, do preço. O outro perde, mas você perde igual, ou mais, porque deixa de consumir o produto que escolheu.
Vamos procurar parceiros e interlocutores confiáveis para influenciar uma decisão para excluir as placas da medida protecionista. Feito isso, o Brasil está ok.
Sem contar o risco de entrar em escalada protecionista...
Sim, um retalia o outro. Há um processo de perda coletiva em que o mundo inteiro sai perdendo. O comércio mundial cai, a economia mundial cai, aumenta o desemprego. E aí?
É possível negociar sem lógica?
É preciso ter paciência, humildade, pragmatismo, e negociar à exaustão. No meio da balbúrdia, da irracionalidade, tem gente inteligente. Tem de procurar interlocutores confiáveis, procurar exercer influência no Congresso, na iniciativa privada americana que está a nosso favor. Iria de cara para a indústria automobilística e diria 'vocês são nossos aliados nessa causa'. GM, Ford, Chrysler vão perder competitividade. O aço vai ficar mais caro nos EUA. Em outros países, vai haver excesso de oferta e problemas na indústria local, como no Brasil. Interessa à indústria automotiva mundial? Não. Vamos trabalhar junto em Washington. A Anfavea local (Auto Alliance) é uma instituição poderosa. Vamos procurar parceiros e interlocutores confiáveis para influenciar uma decisão para excluir as placas da medida protecionista. Feito isso, o Brasil está ok. E não é só tarefa do governo, que tem limitações do ponto de vista de relações privadas. É o caso de ir para lá o Instituto do Aço, com consultores, especialistas que saibam negociar, dialogar com o governo e façam um trabalho de persuasão. É mais fácil excepcionalizar produto do que país.
Essa escalada protecionista pode ter repercussão econômica grave, com perda de 0,5 a 1 ponto percentual de crescimento, aumento do desemprego, encarecimento dos produtos, inflação.
Com a OMC já enfraquecida, a medida pode ser a pá de cal na xerife do comércio mundial?Não há dúvida que vai dar exposição à OMC, vai colocar de novo em questão seu papel, sua própria razão de ser. A OMC pode ser rápida, julgar que a medida americana foi ilegal, e os EUA podem não aceitar, mantendo a sobretaxa, com países ganhando direito de retaliar. Como na época do caso do algodão, quando era diretor da Fiesp e participei ativamente na negociação. Na época, apontamos que a melhor solução era uma compensação ao Brasil pela manutenção do subsídio, se não é uma afronta não aceitar a decisão da OMC. Não muda a política de subsídios, prejudica o Brasil, e pior, países africanos que produzem algodão. Os EUA aceitaram pagar milhões de dólares de compensação, o que ajudou a cotonicultura no Brasil, em Benin e em Togo. A OMC fica muito secundária, muito marginal nessa história. O Brasil tem de prestigiar, fazer a reclamação de ofício, mas resolver o problema, lamentavelmente, não vai.
Isso significa uma fase de vale-tudo no comércio mundial?
É difícil dizer, mas o enfraquecimento da OMC de certa forma estimula países não muito disciplinados a atuar de forma desleal, dificultando acesso a mercado, fazendo preços subsidiados. Pode ocorrer acirramento da competição global, com reação de maior protecionismo, com imposição de tarifas, barreiras, cotas de importação. A China é mestre nisso, é a principal quebradora de regras, com recorde em casos de dumping.
Chegaria a afetar a recuperação global?
Pode abalar, sim. A economia está indo muito bem, com crescimento de 3,5%. Essa escalada protecionista pode ter repercussão econômica grave, com perda de 0,5 a 1 ponto percentual de crescimento, aumento do desemprego, encarecimento dos produtos, inflação. Há várias consequências possíveis, que não são imediatas. Os efeitos podem começar a surgir em alguns meses se não houver reversão dessa medida, ao menos parcial.