A última missão de Roberto Abdenur foi a de embaixador do Brasil em Washington, depois de representar o país em Equador, China, Áustria e Alemanha, sempre com grande ênfase na área econômica. Afastou-se do Itamaraty por divergências com o então chanceler do governo Lula Celso Amorim. Saiu criticando a "miopia de um grupo de esquerdistas". Com esse retrospecto, não se esquiva em dizer que acha Donald Trump "um horror", mas procura diferenciar opinião de projeção sobre consequências para o Brasil.
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Em meio à inquietação geral, o que o leva a tentar fazer uma leitura mais equilibrada de uma gestão Trump?
Primeiro preciso dizer que acho o Trump um horror. É inacreditável que um sujeito desses tenha sido eleito presidente dos Estados Unidos. Fico muito preocupado com o que poderá fazer no governo. O que tenho ponderado é que ele tem condições, em princípio, de fazer certas coisas que atenderão a seu eleitorado. O eleitorado dele quer um muro na fronteira com o México, deportação de imigrantes ilegais, redução de impostos, protecionismo contra produtos importados, sobretudo se vierem de empresas americanas que criam empregos fora do país. Esse pessoal é contra o politicamente correto. É contra a vaga entidade chamada elite.
O Trump se comporta, de certa forma, como um caudilho americano. Disse que o sistema, quer dizer, os Estados Unidos, está totalmente errado, e que ele era o único em condições de consertar as coisas. Trump terá muita sorte porque assumirá o governo no momento em que a economia americana está em processo de aceleração. Mesmo se não fizer nada nos primeiros tempos de governo, por inércia, a economia estará bem.
E seu plano econômico?
A política econômica dele é expansionista, porque deseja reduzir fortemente impostos e aumentar imensamente gastos com infraestrutura. É uma injeção de demanda. Além da sorte de chegar ao governo com a economia em processo de expansão, a política econômica dele terá bons resultados a curto prazo. Aumentará o crescimento dos Estados Unidos. A bolsa em Nova York está indo bem, há otimismo entre setores empresariais. Agora, no médio e no curto prazos, essa política econômica aumentará muito o déficit público, a dívida dos EUA. Em algum momento, não sei dizer quando, a questão do déficit terá efeitos muito negativos sobre a economia americana. Essas políticas poderão dar errado. Dependerão do que e de como Trump fará.
Agora, ele tem condições de responder ao seu eleitorado de maneira satisfatória e conseguir alguns progressos na economia. Com a campanha intervencionista, para evitar que empresas americanas criem empregos no Exterior, na base da intimidação e de eventuais compensações, Trump terá condições de preservar alguns postos de trabalho e trazer outros de volta. O curioso é que a inovação tecnológica anda tão rápido que fará com que os custos de produção nos Estados Unidos se tornem mais competitivos do que antes. Na indústria têxtil, por exemplo, 95% das roupas dos americanos são feitas no Exterior. Mas, com novas técnicas de automação, a produtividade aumentará, e os custos cairão. Será possível que ao menos parte da produção dos tecidos e das confecções volte para os EUA.
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Para o Brasil, quais os possíveis impactos do governo Trump no curto e no médio prazos?
O Brasil não deve ser impactado de maneira direta. Os efeitos serão indiretos. Se Trump for muito longe no protecionismo e desencadear guerra comercial com China, México e outros países, haverá impacto deletério sobre todo o comércio internacional, que vive momento de baixa. Pela primeira vez em 15 anos, o comércio internacional deve crescer menos do que a expansão da economia global. É uma reversão. O comércio internacional crescia até com o dobro de velocidade do que o PIB global. Se Trump balançar demais o coreto, haverá efeitos sobre o comércio e a economia internacional, com a criação de ambiente de incertezas e instabilidade. Isso é desfavorável para o Brasil.
O ruim é que o protecionismo de Trump está na contramão do impulso do atual governo brasileiro, que é positivo, de buscar acordos de comércio com diferentes países e organizações internacionais, para aumentar as exportações brasileiras. O Brasil buscará negociações com a EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, composta por dois países minúsculos, Islândia e Liechtenstein, além de Noruega e Suíça. Embora pequenos, Noruega e Suíça têm economias fortes. O protecionismo de Trump pode dificultar esforços brasileiros para aumentar exportações aos EUA. Não se coloca no momento, infelizmente, a hipótese de grande acordo comercial entre Brasil e EUA ou entre Mercosul e EUA. Está completamente fora de jogo depois da derrubada, anos atrás, da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca.
O Brasil está procurando estabelecer comércio com os EUA mediante entendimentos setoriais, sobretudo de convergência regulatória. E tem obtido algum progresso. Pode ser que isso ainda dê jogo. Mas se o protecionismo de Trump for muito amplo, nossos interesses podem ser atrapalhados. Em termos macroeconômicos, a política expansionista terá efeito inflacionário, o que levará ao aumento do juro, ainda muito baixo em comparação ao brasileiro.
O aumento no juro americano é previsto no curto ou no médio prazo?
Em uma economia em expansão, e com tendência inflacionária, provavelmente o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) irá acelerar a elevação do juro. Com a alta confiança dos títulos americanos no mundo inteiro, é possível que capitais que viriam para o Brasil sejam investidos em papéis do Tesouro americano. Não é jogo de tudo ou nada. Poderá acontecer um pouco aqui, um pouco lá.
Com a mira de Trump sobre China e Europa, pode sobrar chumbo para América Latina e Brasil?
O olhar de Trump para a América Latina se concentra no México. Ele não está pensando no Brasil. Nossas relações com os EUA estão indo muito bem. São sólidas. No comércio, estão progredindo na base de entendimentos tópicos, mas pragmáticos, que produzem resultados positivos. Não é de se esperar nada sensacional em relação aos EUA, nem pelo lado positivo, nem pelo negativo.
Os efeitos das políticas que serão lançadas por Trump serão sentidos de maneira mais indireta. Pode ser que, em determinado produto ou setor, sejam impostas barreiras prejudiciais para nossos interesses. Por exemplo, os americanos impuseram acordos antidumping contra o aço brasileiro. Então, alguns setores podem ser atingidos. Não vejo Trump dando tiros de metralhadora contra o Brasil.