
Especialista em políticas públicas e gestão governamental na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Disoc/Ipea), Rogério Nagamine Costanzi já passou pelo Ministério da Previdência Social como subsecretário do Regime Geral de Previdência Social e coordenador-geral de Estudos Previdenciários, entre outros cargos. Doutor em Economia pela Universidade Autônoma de Madrid, é um dos mais respeitados especialistas em previdência no Brasil. Integrou a equipe que elaborou a proposta da reforma previdenciária de 2019 e, até pelas mudanças feitas na época, defende a necessidade de uma nova revisão das regras. Cético, não acredita que o escândalo das fraudes no INSS ajude a convencer políticos da necessidade, mas avisa: ou se faz, ou o problema fiscal do Brasil vai se agravar.
Qual deve ser o impacto da fraude no INSS no já desequilibrado orçamento da previdência?
Primeiro, o governo ainda não sabe qual o valor que tem de ser ressarcido. Não vai ser fácil estimar esse valor, até porque não se sabe o quanto vão recuar na investigação. Os convênios para descontos começaram com a lei 8.213, de 1991.
Esse escândalo chama atenção para o problema estrutural da previdência?
Os gastos com previdência e assistência social, que inclui o BPC, estão diminuindo o espaço fiscal para outras despesas. Se considerarmos só o regime geral (do setor privado), é quase metade do orçamento primário (sem contar o custo da dívida). Com a previdência militar, passa da metade. E se contar todos os benefícios previdenciários e assistenciais, chegamos perto de três quartos da despesa primária. E vem crescendo em ritmo muito acelerado. Nos próximos anos, só com o regime geral a despesa vai chegar a US$ 1 trilhão.
Já se disse que um pente-fino na previdência teria pouco efeito, diante da fraude essa percepção muda?
Um pouco, mas os cortes precisam ser mais estruturais. Precisamos de uma nova reforma da previdência. Na verdade, é até contraditório falar em pente-fino diante das fraudes detectadas. Além dos descontos, existem outros problemas que abrem espaço para fraude.
Pode citar um?
Um é o AtestMed. O governo estava preocupado com a fila e passou a conceder benefícios de auxílio-doença sem perícia presencial, só com atestado. Houve explosão de auxílio-doença, o estoque chegou a crescer 80% de setembro de 2023 a julho de 2024. É preciso rever, porque abriu espaço para fraude. Mas esse é um problema que precisa ser resolvido no curto prazo. No longo, vamos precisar de uma nova reforma.
Por quê?
Em primeiro lugar, pela questão do envelhecimento. O Censo de 2022 mostrou que a população brasileira está envelhecendo mais rapidamente do que se imaginava. Uma projeção feita no ano passado mostra que a previdência tem mais ou menos dois contribuintes para cada beneficiário. Na década de 2050, a projeção é de que tenha um contribuinte para cada beneficiário, sem reforma. Outro motivo é o fato de que há pontos que não foram resolvidos na reforma de 2019. Durante a tramitação no Congresso, houve mudanças que obrigam a fazer uma nova reforma.
Quais?
A proposta original de 2019 alterava a previdência rural, mas o governo tirou, não mexeu em nada. Foi uma das piores falhas. Também previa as mesmas regras para servidores federais, estaduais e municipais, mas o Congresso tirou Estados e municípios, que ficaram com regras diferenciadas. Dos 27 Estados (com Distrito Federal), 21 fizeram reformas, a maioria com regras mais brandas do que as federais. Nos municípios, dois a cada três com regime próprio não fizeram reformas. Isso se deve a mudanças que o Congresso fez.
O que seria mais importante ter em uma nova reforma?
No regime geral, vai ser preciso mexer na área rural e resolver o problema do MEI. A contribuição é muito baixa, quase simbólica, e os MEIs já representam 11% dos contribuintes e 1% da receita. Virou um grande problema no financiamento da previdência. E esse ainda é um benefício mal focalizado, quer dizer, não está subsidiando os mais pobres, os que mais precisam. Está havendo muita migração de gente com carteira para MEI. Não ganha nada em proteção e perde muito com arrecadação. E ainda ter mesma regra para servidores federais, estaduais e municipais.
Será preciso mudar a idade mínima?
O melhor seria adotar um mecanismo de ajustamento automático à demografia. Esse tipo de medida já existe em dois a cada três países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A idade de aposentadoria fica vinculada ao ganho de expectativa de vida da população. Se aumenta a expectativa de vida, aumenta a idade mínima para aposentadoria. Eu integrava a equipe que fez a proposta da reforma anterior, e havia esse mecanismo, que o Congresso derrubou.
Existem outras possibilidades?
Também poderia ser adotado o sistema de contas nocionais. Existe na Suécia e em outros países desenvolvidos, que mantém o regime de repartição, em que os ativos contribuem para sustentar os benefícios dos inativos, mas a definição do valor do benefício é feita como se estivesse em sistema de capitalização (em que cada um poupa para financiar a própria aposentadoria). Os recursos não vão para uma cota de investimento, mas as contribuições vão sendo contabilizadas e, no final, o valor do benefício é calculado a partir das contribuição de cada um.
Isso reduz o benefício?
Pode reduzir, mas a pessoa vai receber o que efetivamente contribuiu. Também se pode fazer um misto, adotar o sistema nocional, mas garantir ao menos o pagamento do salário mínimo. Vai calcular tudo o que contribuiu e definir o valor do benefício, a partir da expectativa de vida. Se abaixo do mínimo, haveria uma complementação. Seria um sistema mais justo do ponto de vista intergeracional.
Outra mudança na reforma de 2019 foi relativa à previdência dos militares. Será preciso rever?
É necessária e uma prioridade. É preciso fazer uma reforma mais ampla na previdência dos militares. Houve mudanças em 2019, mas só para aumentar o tempo de serviço, a alíquota de contribuição para pensão. Os militares ainda têm várias vantagens em relação aos demais servidores públicos, com paridade e integralidade do salário na aposentadoria. É fundamental fazer uma reforma mais ampla, que aproxime os militares dos servidores civis e do regime geral do INSS. A previdência militar teve um déficit grande no ano passado, de R$ 50 bilhões. É um número alto para pouca gente.
A reforma anterior precisou de anos de convencimento para sair. Haverá condições de fazer outra?
O Congresso tem de entender que ou faz uma nova reforma previdenciária ou país vai caminhar para uma crise fiscal ainda mais aguda. O aumento do endividamento público é bastante preocupante. Sei que há resistências, os parlamentares acham que não serão reeleitos. Por isso, a melhor solução é fazer no primeiro ano de governo. Não tem outro jeito.
Com todo esse cenário, a que atribui o fato de o escândalo ter sido tão malconduzido pelo atual governo?
É preciso repensar maneiras de obter governabilidade que não tenha custo tão alto do ponto de vista de corrupção.
Isso pode sensibilizar para a necessidade de uma reforma?
Não acho que vá sensibilizar para a necessidade de uma nova reforma da previdência. Espero que sensibilize para buscar uma forma de obter governabilidade que não gere corrupção. Roubar aposentados e pensionistas é absolutamente inaceitável. E abriram a possibilidade de empréstimo consignado para pessoas que recebem BPC. Não sei se foi uma boa ideia.
Há experiência internacional que possa ajudar a sanar a fraude de forma mais efetiva?
A falha é muito mais no combate à corrupção. Terá de melhorar muito institucionalmente. É preciso redesenhar o Estado brasileiro do ponto de vista institucional para coibir a corrupção. Infelizmente, o loteamento político custa caro.