Em 1997, a revista Veja fez uma reportagem marcante. Entrevistou 80 mulheres que fizeram aborto, de todos os estratos sociais, para perguntar por qual razão e como o fizeram. Em comum falaram de solidão, angústia, culpa e dor, e da ausência do homem envolvido. Ainda lembraram-se das clínicas precárias, da enfermagem despreparada e dos médicos inescrupulosos. Algumas das entrevistadas eram famosas, por exemplo Hebe Camargo, que narrou sua experiência.
A revista encarou a questão a partir da realidade. Simplesmente retratou o drama cotidiano que as brasileiras enfrentam quando precisam interromper uma gestação. Aborto não é fácil, de um jeito ou de outro, sempre dói.
Elas não são poucas, os números falam por si, uma em cada sete mulheres, ao redor dos 40 anos, já abortou; dessas, a metade com menos de 19 anos. Quem pode pagar um aborto sai-se melhor, quem não, usa perigosos métodos caseiros. Muitas morrem na indigência desse processo.
É fácil ser contra o aborto, até que um problema real surja. Então, as que são contrárias e abortam, dizem que o seu caso, ou da sua filha, foi uma situação excepcional. É de se perguntar: qual caso não seria?
Esse é o mundo real sobre o aborto. Já na realidade paralela dos políticos ultraconservadores, na maioria homens, o tema é uma obsessão moralista. Por isso pleiteiam no Congresso endurecer as penas contra o aborto. Na prática, uma menina ou mulher estuprada, que abortar depois da 22ª semana, terá pena maior do que a do estuprador.
A matéria da Veja refletia um momento politicamente mais maduro do país. Vinte e sete anos depois, a Câmara pautou a urgência desse projeto retrógrado. O Brasil com seus problemas econômicos, de educação e de saúde, agora com a crise climática chegando, e essa é a prioridade? Rumo ao século 19, é isso?
Parte da bancada não tem projetos exequíveis para o país. Como forma de sobreviver, de fazer oposição, cria polêmicas diversionistas. Perverte a política para exigir dos outros a moralidade que não tem.
As mulheres vêm mudando, não aceitam mais relações desiguais. Homens inconformados odeiam mulheres independentes. Querem de volta suas parceiras, mães, irmãs e filhas, submissas e devotadas. Querem voltar a controlar seus corpos, tirando-lhes o poder sobre o que acontece com eles caso engravidem. Infelizmente, são eles que ainda não se independizaram de mulheres que os cuidem, adulem e temam.