Nossa língua derrama sobre a natureza e os objetos uma fixação humana: o gênero. Sem serem consultados, os classificamos como masculino ou feminino. Aleatoriamente, as coisas tornaram-se ele ou ela. Nem todas as línguas criaram essa neurose, o japonês, por exemplo, não usa esta classificação, tanto imaginária como inútil.
Porém, essa obsessão pelo gênero das coisas não é sem consequências sobre como as pensamos. Uma pesquisa perguntou aos espanhóis os adjetivos que lhes vinham à cabeça para ponte (el puente, que é masculino), depois aos alemães o mesmo (no caso, die Brücke é feminino). Para os espanhóis, a ponte é forte, estável e robusta. Para os alemães, ela é elegante, linda e esbelta. Ou seja, uma pretensa "personalidade" que um objeto tivesse não se valeria da sua qualidade intrínseca, e sim do que a língua lhe atribui pelo gênero.
Quando vejo o movimento para tornar neutra a nomenclatura de gênero humana, imagino o tamanho da empreitada, visto o quanto essa flexão é entranhada em nossa língua. Dada a complexidade deste caminho, é de se perguntar: nas línguas onde não há gênero, as minorias são mais bem tratadas? Sentem-se melhor? Não parece ser o caso da língua persa, nela tudo é neutro, e o Irã dispensa comentários quanto a isso.
Mas não sou eu que sofro a dor de uma significação sentida como opressiva e discriminatória. Logo, não me cabe opinar, e sim reconhecer e apoiar. Apenas temo, como psicanalista, que a questão da identidade de gênero possa tornar-se uma armadilha.
A marcação como masculino ou feminino não diminuiu, tanto quanto possa parecer, o sofrimento dos cisgênero quanto às imposições que a cultura exige. Ela já não dava conta das múltiplas formas de ser homem ou mulher.
Sábio é não acreditar que afirmar-se como um gênero ou outro seja o eixo central do que nos define. Ser de um gênero ou outro diz pouco de cada um. Nós temos inúmeras outras identidades: a nacional, a ancestralidade, a religiosa, a linguística, a de uma classe social, a cultural, a política, a regional, a profissional, a clubista, e a lista segue.
A hipertrofia de uma identificação nos empobrece. Temo que a briga pelo reconhecimento de uma posição identitária particular, por ser negada e reprimida, possa inflacionar seu significado, fazendo-a parecer maior e mais central do que as outras. Não aposte em tirar muito sentido de sua maneira sexual de estar no mundo.