A sorte não é um assunto popular. Não gostamos de admitir sua importância na nossa vida. Preferimos falar em conquistas para poder enaltecer o ego. A verdade é que o acaso determina nossas vidas mais do que gostaríamos. Podemos esquecer do demônio das contingências, mas ele não esquece de nós.
Quando penso na minha sorte, penso nas mulheres. Tive a felicidade de nascer em uma família de mulheres inteligentes e fortes. Nunca me fez sentido a superioridade masculina para qualquer coisa. Salvo, talvez, uma capacidade maior para fazer besteira.
Por isso não desenvolvi o complexo de Cebolinha, o célebre personagem do Mauricio de Sousa que vive para pensar maneiras de derrotar a Mônica e tornar-se o dono da rua. Sempre procurei alguém para ser sócio da rua. Tive sorte de encontrar alguém melhor do que eu. Como diz meu amigo Marcio Pinheiro, não sou o melhor cronista nem na minha casa. Acredito que a Diana me bate não só na escrita, creio que só levo vantagem nas habilidades botânicas e no senso de orientação.
A sorte não parou. Tive duas filhas. Sempre soube que seria pai de meninas. Essas intuições inexplicáveis que temos, depois se confirmam e nos dão a falsa ideia de destino. De qualquer forma elas chegaram. Se houvesse mais uma gestação, na minha imaginação, viria a terceira.
Encanto, último filme da Disney, é sobre dons recebidos, sobre herança da história familiar. Mas vai além, é mais uma bem-vinda história sobre personagens femininas fortes e marcantes. Aliás, uma delas, Luisa, é uma Hércules. O que traz essa personagem, de que força se trata? Ou ainda, por que aceitamos fácil uma personagem, como a Mônica, que possui força descomunal inexplicável?
A análise clássica pensa nessas mulheres vigorosas como lembrança inconsciente da mãe que tivemos: uma giganta protetora e poderosa enquanto éramos pequenos e frágeis. Sim, mas talvez haja algo mais. Talvez representem também a força não reconhecida do poder feminino, a negação do papel de sexo frágil.
Além de não serem nada frágeis, às mulheres têm sido exigidas demonstrações incessantes de potência, vitalidade e abnegação aos seus. Elas são destinadas a literalmente carregar seus filhos por anos, alimentá-los com o próprio corpo, cuidar das doenças da família inteira. E nem chegamos ao capítulo do trabalho doméstico.
A família retratada no filme é matriarcal, como muitíssimas famílias brasileiras, especialmente nas classes populares. Os homens circulam, nem sempre a trabalho, e as mulheres é que bancam o alicerce objetivo e subjetivo que costura a vida dos filhos e a união familiar. De onde tiram tanta força? Definitivamente, elas nascem com todo esse encanto, mas já basta de fazer destes dons uma sina.