O lugar era o mais improvável para assombração. Estava numa ferragem na Benjamim, dessas à moda antiga, naquela alegre bagunça de mercadorias. Quando vi um colega de escola que não via há décadas. Não seria inusitado se ele não fosse um desaparecido. A família, depois de procurá-lo desatinadamente, acreditava na sua morte.
Aproximei-me temeroso, poderia ser uma gafe. Conhecia-o bem, estudamos juntos o ginásio, um ano dividimos a carteira. Tinha que ser ele. Disse-lhe o seu nome e me apresentei. Ele, tomado pelo susto, congelou. Ficamos olhos nos olhos por aqueles momentos eternos. Depois baixou a cabeça, tentava não me encarar e disse que eu estava enganado. Mas era tarde demais para fugir.
Segurei o seu braço e lhe perguntei o que aconteceu. Por onde andaste? De que estás fugindo? Vendo que eu não desistiria acabou falando.
Contou uma história triste, mas disse que gostava da vida que inventou para si. Quando chegou a Porto Alegre não se adaptou e não conseguiu levar a faculdade. Porém mentia para família que tudo ia bem. No ano seguinte não voltou a estudar. Só zanzava pela cidade sem direção, sem amigos, sem ter com quem falar.
No segundo ano da farsa conseguiu um emprego no subúrbio e sumiu. Não queria encontrar os pais e enfrentar a mentira. Disse que os odiava e que foi um alívio abandoná-los. Casou e nem a esposa sabe seu verdadeiro nome. Tirou do bolso a carteira de motorista e mostrou-me seu novo nome. "Confessou" para a família da mulher que é foragido. Disse que matara alguém numa briga e por isso não pode ver ninguém do passado. A única vez que sorriu, foi quando contou que todos foram compreensivos, e acreditavam que merecia uma segunda chance.
Quando tentei lhe falar da sua família desconversou e saiu. O acompanhei até o carro, uma Parati bem conservada, placa de Canoas, cheia de ferramentas. As mãos grossas o denunciavam, aquilo não eram obras em casa, era seu trabalho. Deveria viver como faz tudo, ou pedreiro. Despediu-se pedindo que o esquecesse.
Caro ex-colega, vou falar aquilo que não me deixaste te dizer pessoalmente: teus pais já se foram, mas teus irmãos estão bem e fizeram família. E sim, tu és foragido, pois mataste numa briga tua vida pregressa. No que toca a ti sem problema, mas no que diz respeito a teus irmãos ela não era só tua. Volta para casa. Eles não precisam de um vencedor, eles precisam de um irmão. Todos precisamos de irmãos, sejam como forem. Faz eles ganharem na loteria recebendo um irmão que julgavam morto. Só peço que avises antes tua irmã, ela é cardíaca.