Já escutei várias mulheres reclamando de que precisavam trabalhar de salto alto. Não era um pedido explícito do empregador, mas aquelas regras não escritas que se fazem valer pelo hábito. Trabalhar nunca é fácil, mas elas reclamavam da tortura aos pés, não dos afazeres profissionais.
A dificuldade não é para todas, vejo mulheres lépidas e faceiras equilibrando-se em cima de vários centímetros. Algumas parece que desenvolveram com gosto esta habilidade e a praticam como esporte.
Para outras, o salto é um desafio e uma inconveniência, um suplício que só espera a hora de voltar para casa. Algumas carregam um par "caminhável" na bolsa, que trocam pelo "martirizável" no trabalho.
Curioso é pensar na contradição entre a origem do uso do salto alto e sua condição no ambiente de trabalho. Um autor americano, Thorstein Veblen, escreveu um dos meus livros favoritos: A Teoria da Classe Ociosa. Na obra, comenta os signos usados por nobres ou ricos para demonstrarem que não estão acorrentados à vida laboral, logo têm muito tempo ocioso, portanto são ricos.
A questão é como imediatamente atestar a condição social para quem não te conhece. Um dos tantos sinais disso era justamente o salto alto, pois é impossível trabalhar com eles. Só os usavam mulheres que não pisavam na cozinha, que não carregavam seus filhos no colo, aliás, eles estavam com as babás. O mesmo vale para as unhas pintadas, não são para quem enfrenta pia e tanque. Estão ali coloridas para dizer que sua dona não conhece sabão.
Na época, a moda era ser branco total radiante, pois quem trabalhava trazia as marcas do sol. O sangue azul era sinônimo de nobre, por vermos as veias sob a pele branca. Posteriormente, ter o corpo bronzeado passou a atestar ter tempo para a preguiça da praia em vez de estar preso à fábrica ou repartição. O mesmo vale para os músculos dos corpos esculpidos de hoje. Quem consegue fazer muita academia mostra o investimento que isso requer.
Hoje, roupas, sapatos e cabelos desconfortáveis são exigidos para valorizar uma mulher no seu trabalho. Para desempenhar sua função, elas arrastam uma carapaça simbólica vitoriana. Carece vestir-se de princesa para ressaltar a nobreza da firma e ficar ao gosto dos clientes. A antiga marca da riqueza tornou-se fetiche-padrão.
Seus saltos são as nossas gravatas. Embora sejam um dos poucos adereços masculinos, elas lembram demais uma coleira. Nos prendem pelo pescoço a uma identidade profissional. A gravata atesta que quem manda não somos nós, mas uma entidade abstrata e impessoal, os obscuros deuses do trabalho e suas inclementes obrigações. Não basta produzir, existe um uniforme de respeito a ser usado, que traz o signo do sacrifício e da submissão. Carregar algo do nosso passado é inevitável, mas sinto que nos tocou a parte mais tola.