Os manuais de etiqueta são precisos em tantos detalhes, porém todos deixam um flanco aberto: o que fazer quando encontramos com os mortos conhecidos que estão a passeio no nosso mundo?
Aqui vão regras simples que servem para todas as ocasiões. Não é de bom-tom que percebam que os reconhecemos. Melhor fingir que não os vimos. Embora seja óbvio, recordo que não podemos falar, ou ter qualquer troca, com os que já se foram. Até porque eles terão sumido, são ágeis na arte da fuga, portanto nada de gritos para aqueles que já lhe deram as costas e estão saindo da cena. Invocar seus nomes, pedir que deem meia-volta, é grosseiro. O máximo de intimidade permitida é trocar um rápido olhar cúmplice, no qual deve estar implícito que a comunicação é impossível e nada vai ser tentado.
Pessoalmente, o que me é mais custoso é permanecer no caminho prévio. Quando vemos alguém do outro mundo, especialmente se é alguém que nos foi caro e que admiramos, e, sabendo que o encontro deve ser evitado, é natural que queiramos deixar o outro passar. Afinal, é uma das regras de conduta básica ceder o passo aos mais velhos. Depois da morte, isso se inverte. Devemos seguir nosso caminho e eles se incumbirão do desvio que evitará o encontro. Parece rude, mas é o certo. Eles estão de passagem e sabem que devem nos evitar.
O que fazer com mortos que nos espiam? Eu tenho esse problema. Meu avô paterno dá umas incertas nos mais variados lugares. Temos o mesmo nome, creio que isso para ele deve fazer diferença, pois meus irmãos não relatam essas visitas. Fique tranquilo, é apenas curiosidade do povo do outro lado. Querem ver com os próprios olhos aquilo que já sabem. Não há uma mensagem, não estão em uma missão, e sim a passeio.
Não acredito em vida após a morte. Apenas não posso deixar de notar que os nossos mortos nos assombram e preenchem uma lacuna naquele espaço do pensamento onde nunca sabemos se sonhamos, fantasiamos ou alucinamos. Desde ali eles nos visitam.
A parte mais dolorosa da perda não é que nunca mais veremos aqueles que amamos, mas, sim, o fato de que eles nunca mais nos verão. Carecemos do olhar dos que nos são importantes. Até quando fracassamos esperamos que nossos seres queridos sejam testemunhas do sofrimento, das mazelas que nos vitimam. A morte priva-nos de aliados, de membros da nossa torcida íntima. Como se atrevem a partir e deixar-nos desamparados desse jeito? O mínimo que se espera é que desde o além continuem a olhar por nós.
Nossos mortos vivem da nossa memória, nutrem-se dela, são feitos da mesma substância da qual são fabricadas nossas lembranças. Eles nos querem porque sabem que, quando nós também passarmos para o outro lado, eles morrem outra vez. Espiam o que fazemos da nossa vida porque querem saber se somos dignos de sua história.