A Jornada Nacional de Literatura me convidou para falar sobre monstros. Aproveitei para rever as paisagens da infância, gastar as saudades dos parentes, amigos e me reconectar com o orgulho de ser passo-fundense.
Sofri e fracassei na ficção para diminuir os tombos na realidade
Ali me tocou nascer, mas sei que sigo nascendo em cada livro que leio. Acredito que é pouco viver apenas uma existência, vou aos livros em busca de mais.
A leitura me apresentou ancestrais que nem sabia que tinha, me remeteu a um passado de séculos, de milênios. Descobri que sou romano, grego, fenício, africano, tenho parentes de todos os clãs. A conexão com a história nos dá uma humildade que deveria ser a oração de cada manhã.
Inspirei-me em heróis para reconquistar a força quando ela me abandona. Aprendi com o erro dos personagens dos romances. São trajetórias imaginárias, virtuais, mas nem por isso menos sentidas. Sofri e fracassei na ficção para diminuir os tombos na realidade.
Quem lê esgarça o tecido do real para encaixar sua fantasia. Quem lê descobre que o simples não existe, que tudo possui mil caminhos e que as verdades são provisórias.
Quem lê sai na frente, empreende, cria coisas onde não havia nada. A leitura é o melhor treino para enriquecer a fala, aguçar o olhar, afinar os ouvidos e nos traduzir para todos. Encontraremos a palavra justa, a mais simples para dar contorno ao que sentimos, para nos aproximar dos semelhantes com a serenidade dos livres de preconceitos.
A experiência da literatura nos convence das infinitas possibilidades de ser. É vacina para não sofrermos quando desencaixamos do que esperam de nós. O ser humano é plástico, somos uma raça sem molde, mas nem por isso faltam-nos espinha, brio e moral.
Mas fui para falar de monstros do folclore. Seres que nasceram de nossos medos e hoje sobrevivem na reserva ecológica na literatura. A questão é que seguimos produzindo monstros, temos um apetite sem freio para imaginar figuras que nos assustam.
Os monstros são esboços provisórios para a angústia, por isso inseparáveis da condição humana. Eles são faces do inominável, do irrepresentável da agressividade descontrolada, a nossa e a dos outros. Eles são o espantalho que lembra nossa finitude. Mas também sinalizam as rupturas da cultura: aparecem quando a barbárie se insinua. E por último, mas não menos importante, eles nos devolvem uma metafísica perdida: como aposentamos o diabo e ficamos carentes de nomes claros para o mal, os monstros fazem essa suplência.
Para tudo o que somos sem querer, ou o que quisemos ser mas nunca fomos, ou ainda o que é mas não devia e o que devia mas não foi, existe a literatura. Para o que é mais incompreensível: os monstros.
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