Quem tiver curiosidade de descobrir o que acontece a um país onde seu presidente encara a imprensa como filial do palácio e a transforma em adorno bajulatório pode agora olhar para a Rússia. O equivalente russo ao “jornalismo lixo”, aquele que ousava ser independente e se interpor diante das ambições autoritárias e mirabolantes de Vladimir Putin, desapareceu. Os últimos soluços da liberdade de imprensa foram sufocados por uma nova legislação que prevê até 15 anos de prisão a quem espalhar falsidades sobre as forças armadas.
Na malfadada versão russa da regulamentação da mídia, podem ser inverdades chamar a invasão da Ucrânia de guerra, informar sobre ataques a alvos civis ou a morte de mulheres e crianças ucranianas. A lei atingiu em cheio sites independentes estrangeiros, como a BBC e a Deutsche Welle, que deixaram de operar da Rússia, e os remanescentes da imprensa livre, entre eles o jornal Novaya Gazeta, que se viu compelido a apagar todo o conteúdo potencialmente contrário às novas regras de censura.
Há quatro anos, então como presidente do Fórum Mundial de Editores, tive o privilégio de, numa cerimônia em Cartagena, na Colômbia, entregar ao Novaya Gazeta o “Golden Pen of Freedom”, uma das principais premiações internacionais no campo da liberdade de imprensa. Antes da guerra, o Novaya já era uma fortaleza diante daqueles que alvejam jornalistas que criticam, investigam e denunciam governos. O jornal era acusado de “vendido” e de estar a serviço de qualquer outra coisa que não a busca da verdade. Nesta sua missão, tão incompreendida por fanatizados pela polarização, o Novaya teve sete jornalistas mortos desde 2000. Muito justificadamente, seu diretor, Dmitry Muratov, foi um dos vencedores do Nobel da Paz no ano passado.
Com o manto do silêncio baixado sobre a Rússia, a cobertura da guerra na Ucrânia pelas lentes de Moscou virou um exercício patético sobre como encobrir a realidade. TVs, rádios, jornais e sites domesticados repetem a ladainha de que as forças russas fazem uma operação militar para proteger cidadãos de origem russa submetidos a um genocídio. Não há imagens ou relatos de ataques russos a alvos civis – os danos, quando citados, são causados por bombardeios ucranianos, segundo a imprensa de Putin.
A estratégia do neostalinismo de Moscou tem tido algum efeito. De acordo com uma reportagem do The New York Times, quando ucranianos com parentes e amigos na Rússia relatam por telefone e mensagens por celular os fatos que ocorrem na Ucrânia, entre eles a morte de civis e a resistência e protestos contra a invasão, são contestados como fantasiosos ou disseminadores de fake news, porque nada daquilo está sendo divulgado pela mídia local.
É isso que ocorre quando a imprensa se subordina a governos: ela, como ainda ambicionam alguns em muitas parte do mundo, se reduz a mera máquina de propaganda a propulsionar autocratas e seus delírios.