Haia, setembro de 2021
Prezado patriota de camiseta da Seleção, escrevo esta carta do centro administrativo e político da Holanda, onde passo uma temporada e onde também fica o Palácio da Paz, como é conhecida a Corte Internacional de Justiça, criada para dirimir pendengas entre países. Aqui, entre tílias e canais que refletem os primeiros sinais do outono, tudo gira em torno da paz, da solução de conflitos e da justiça. Tolerância, harmonia e pluralidade se misturam no ar fresco que sopra do Mar do Norte.
Apesar do ambiente de condescendência, não me deixo enganar. A Polícia e os próprios cidadãos são firmes com transgressores. Apertar ciclista na rua é reprimenda na certa. Desrespeitar leis é uma temeridade. É sobre elas que se construiu uma das sociedades mais livres, prósperas e democráticas da Terra. Mas isso não significa que aqui você pode ofender quem bem entender. Aliás, por aqui também cresce a polarização e surgiu até um político de extrema direita que põe em dúvida o processo eleitoral.
Em Haia, está também o Tribunal Penal Internacional e aqui funcionou até 2017 a corte da ONU para a ex-Iugoslávia, que condenou por atrocidades mais de 160 políticos e militares. Como repórter, estive duas vezes na ex-Iugoslávia durante a guerra civil. Testemunhei coisas inimagináveis, fruto de um súbito ódio que levou vizinhos de rua a se matarem, em um banho de sangue a meros 250 quilômetros de Veneza. Pude ver os resultados do rancor e da radicalização da sociedade por dois lados. Em um deles, na Croácia, o sofrimento e a carnificina de famílias inteiras. De outro, na Sérvia, uma hiperinflação que massacrava a população com preços que subiam de hora em hora. No fundo, nenhum lado por lá tinha razão, e todos saíram perdendo por causa do ódio mútuo.
O líder dos sérvios era um socialista autoritário, de nacionalismo extremado, chamado Slobodan Milosevic. Acabou derrubado e enviado a Haia para ser julgado, mas morreu numa prisão holandesa antes do veredicto. Era um criminoso, mas ainda hoje muitos sérvios o idolatram por seu patriotismo.
Lembro tudo isso porque rancores, nacionalismo exacerbado e veneração de políticos radicais, ainda que com alguns surtos de bom senso, não costumam construir nações, mas fragmentá-las a ponto de destruí-las em guerras civis. Vistas daqui, as manifestações do 7 de Setembro, fora um ou outro baderneiro, mostraram tranquilidade e fundas convicções nas multidões. Elas podem ajudar a levar o Brasil para o curso natural da divergência democrática ou para a catástrofe, como se viu na Iugoslávia. Assim como Ruy Barbosa, líderes brasileiros só deveriam frequentar Haia para conhecer seus belos bosques, admirar seus museus e fulgurar em suas universidades e tribunas. Não deveriam ser cogitados para se sentar no banco de réus.
Com meus votos de paz, despeço-me.