Não falo aqui especialmente das amizades que foram interrompidas, fisicamente, pela morte, mas que, como os amores, continuam na nossa emoção.
Falo das que perdi, não por desamor ou algum raciocínio lá delas, por algum motivo que em geral nunca descobri – não sou tão inteligente quanto as pessoas pensam –, mas que acabaram. Foram embora, sem sinal, sem adeus, sem explicação.
Falo das que perdi, nos perdemos, e não foi falta de amizade. A primeira chamava-se Susana, nome de minha primeira boneca, nome que muito tempo depois dei a minha filha. Tínhamos, as duas, 11 a 12 anos. Era minha colega de aula, filha do pastor, minha família era luterana. Susana, como acontece com todas ou quase todas as meninas sem irmã, foi por um bom tempo a irmã desejada, e era recíproco, pois eu tinha um irmão, ela dois. Depois sua mãe, uma mulher alta, generosa, bondosíssima, morreu de um câncer agressivo e rápido. Ficamos mais unidas ainda, mas meses depois seu pai, o pastor Riemann, voltou para a Alemanha, onde ele e a esposa tinham nascido.
Por algum tempo nos comunicamos por cartas, que levavam, então, duas semanas a três. Numa delas, minha amiga me contou que seu irmãozinho menor tinha morrido num acidente de esqui. Um dia ela me disse que iam se mudar para alguma cidade que eu desconhecia, mas ficava “atrás da Cortina de Ferro”. Nunca mais nos comunicamos, nunca mais eu soube dela. Alguém me explicou que atrás da Cortina havia isolamento total. Recentemente, num acesso de nostalgia, publiquei na internet seu nome de menina, mas nunca tive resposta. Era da minha idade. Estamos velhas. Talvez ela nem exista mais.
A segunda amizade perdida foi de uma colega de Ensino Médio, últimos dois anos. Muito amiga minha, no colégio católico, em nossa cidade. Bondosa, alegre, paciente, tinha um detalhe que eu admirava: um olho bem azul, outro castanho-claro. Para ela, era um incômodo, mas em geral as pessoas achavam bonito, original. No dia depois da formatura, recebi um comunicado: minha melhor amiga, dos belos olhos diversos, mandava recado de que não ia se despedir, mas estava ingressando numa ordem de freiras muito rigorosa, que não permitia contato nem com familiares nos primeiros meses e, fora isso, só depois de um ano. Nunca eu tinha percebido, em nenhuma palavra, silêncio ou olhar, sinal de que tudo estaria acabado. Lembro de que nos primeiros dias chorei, fiquei furiosa, indignada, mais tarde entendi que era o jeito dela de obedecer a algo maior do que uma boa amizade. Não tive mais notícias dela. Não foi falta de afeto, mas algum chamamento definitivo.
Há também as que não perdi, mas se afastaram, provavelmente por razões políticas, o que me deixou a marca de uma profunda decepção. Como se pode substituir um afeto fraterno por uma ideia, um nome, uma pessoa? Mas tudo é possível nas hostes humanas, e o jeito é aceitar. Algo se desfez, a luz se apagou, por motivos de que nem me dei conta. Nas duas vezes demorei a entender, infantilmente tentei saber o que havia: depois entendi que era hora de cortar aqui do meu lado. Fim. Que pena.
Seja como for, em vez de falar em isolamento forçado, tantos adoecimentos e mortes e confusões e negativas aqui e no mundo, hoje homenageio as amizades perdidas: não as que se foram porque o afeto não prevaleceu, mas por esse enigma que chamamos destino – maior do que nós.