Do jeito que tudo anda, transbordando de conflitos, de novidades inquietantes, a nova doença, as bolsas desabando, os modelos de escola e família, casamento e parcerias mudando, fica difícil a tarefa mais importante: pensar, analisar e escolher o que queremos ser, fazer, que rumo seguir.
Ou deixar que a vida corra como folhas num riacho, aqui e ali nos acomodamos, choramos, rimos, caímos ou vencemos. É uma possibilidade, para quem tem espírito de aventura. Riscos e dilemas podem ser interessantes. O primeiro dilema é pensar. Um de meus livros tem como título Pensar é Transgredir. Invariavelmente, em palestras, alguém dizia, “ah não! Se eu paro pra pensar, desmorono”. Família, escola e sociedade deviam fazer-nos pensar, desenvolver em todos o distanciamento crítico e a capacidade de avaliar – para poder escolher.
Mas, embora nossas escolas se queiram tão modernas, não é o que em geral acontece. Alunos (e filhos) com ideias próprias e questionamentos podem ser um embaraço. Então nos tornamos membros da vasta seita da mediocridade, que cultua o mais fácil, o mais divertido, o que dá menos trabalho e sobretudo que não exige debate.
E, mesmo assim, no fundo de cada um aquele olho da dúvida por vezes entreabre sua pesada pálpebra e nos encara, ameaçador ou irônico: como estamos vivendo a nossa vida, esse breve sopro, quanto valemos, quanto decidimos ou somos tangidos, quanto somos humanos no exercício de uma ainda que controlada liberdade? Quanto cuidamos de nós mesmos, ou nos botamos fora?
E quanto somos independentes? Muito pouco. Faz alguns anos, tive num sonho um vislumbre de uma escultura interminável emergindo muito abaixo de mim e perdendo-se no infinito acima de minha cabeça. Sem entender racionalmente, intuí o que talvez seja um dos significados da existência nossa: encadeamento e continuação.
Como um novelo desenrolando-se incessantemente, todos nascendo uns dos outros, uns por cima dos outros, cada um estendendo as mãos para o alto um milímetro mais e mais e mais... somos novelo e fio ao mesmo tempo. Por isso, a escolha de cada um reflete no todo, ainda que numa fração de milímetro, ou menos e menos ainda.
E, se pararmos pensando na estranheza de nossa vida, vemos que boa parte de nossas cotidianas frustrações vem da dificuldade em parar para refletir sobre esse imponderável que não cabe nos cálculos, foge aos projetos, transborda da nossa competência, se afunda no enigma.
Então, trapalhões mas não inteiramente obtusos, inventamos novas redes de afetos, outra trama de convivências, novo horizonte de trabalhos, tudo se alarga e se complica – mas a gente se adapta, e eventualmente tem o dom do bom senso e do bom humor que nos salvam.
Essa engrenagem não anda para trás: pensar, escolher e decidir são dádivas, com altos preços em alegria, felicidade e, claro, angústia e medo. Nós, os humanos, somos assim.