Não sei dos outros, mas quando éramos pequenos, na década de 1940, não existia um monte de coisas hoje banais.
Não havia antibiótico, pelo menos não onde a gente vivia. Febre era combatida por um líquido vermelho, espesso, com gosto de cereja, “misturada a urina de camelo”, dizia meu pai, achando graça das nossas caretas. Chamava-se Fiberlin e era feito pelo tio farmacêutico. Além disso, para combater infecções, havia sulfadiazina, uns comprimidos retangulares, cor-de-rosa. De alguma forma, a gente sobrevivia.
Eu era dada a febres altas, com delírios, pai correndo, mãe preocupada, médico, tio Arthur, chegando. “Essa menina tem febre de noite até quando anda descalça nas lajes de dia, em dia quente”, reclamava minha mãe vagamente irritada. Lembro de calafrios, tremores, febres, abajur aceso a noite toda, pijaminha molhado de suor, mãe chegando pra trocar às vezes até roupa de cama.
Mas essa era eu, pequena, cheia de medos bobos que só eu tinha e nunca entendi por quê.
Quando eu era pequena, não havia televisão, nem em preto e branco. A gente brincava no pátio ou na calçada até escurecer quando não fazia frio, depois – nos dias gelados, que eram muitos, e geladíssimos – tomava banho e era levada, enrolada na toalha, para se secar e botar pijaminha na frente da lareira. Aí conversava, desenhava, lia, junto do fogo com pai e mãe em suas poltronas. Os lençóis pareciam cobertos de geada, e lembro de um aquecedor elétrico com suas listras de brasa, que logo a mãe apagava com medo de incêndio.
Quando eu era pequena, não havia nenhum inseticida a não ser aquele labirinto verde (“Boa Noite”?), com uma brasinha na ponta, um cheiro inesquecível, e os mosquitos nos deixavam em paz. Ou mosquiteiro, esquisito, bonito, e meio assustador – e se aparecesse um rosto estranho ali atrás dos véus? Mas essa era eu, pequena, cheia de medos bobos que só eu tinha e nunca entendi por quê.
Quando eu era pequena, ir a Torres no verão era um sonho do ano inteiro. Lá por outubro, meu irmãozinho e eu começávamos a sentir cheiro do mar nos dias quentes, porque pra criança quase tudo era possível. Depois, a fileira de noites em que ao ir para a cama a gente perguntava quantas noites ainda tinha de dormir até chegar O DIA.
Finalmente chegava. Acordávamos de madrugada, o mundo com um cheiro diferente àquela hora. Antes do amanhecer, a gente pegava a estrada para uma viagem interminável até a praia, onde se entrava na areia costeando o mar, o pai e outros motoristas indagando “a areia está muito mole, perigo de atolar?”. Quando nós, crianças, quase chorávamos de cansaço, de longe se avistavam as Três Torres e seus penhascos. Apartamento alugado, areia fininha até na alma, adormecer com o mar logo ali fora, pele ardendo porque quando eu era pequena não havia protetor solar, mas creme Nivea, que minha mãe chamava “Nivêa Crem” com “r” acentuado, bolhas nos ombros como parte da nossa felicidade.
Quando eu era pequena, o melhor do ano era o mar de Torres com suas conchas e estrelas, seus murmúrios, ou suspiros, as vozes dos afogados... inesquecível mar, que hoje estou traindo com a casa da Bruxa Boa, na Serra... mas que está sempre comigo.