A realidade gosta de simetrias e pequenos anacronismos, diz o narrador borgeano do inigualável conto O Sul. Eu tenho essa frase como um mantra há décadas, embora saiba que se trata de uma fantasia – não é a realidade que gosta de simetrias, nós é que as encontramos, na realidade ou em nosso desejo. Quanto aos anacronismos, bueno, assim é porque estamos sempre lutando com a passagem do tempo, e uma coisa nunca vai encontrar a outra em coincidência exata nessa longa procissão dos dias em direção ao infinito.
Em 1970, Milton Nascimento lançou em disco uma linda homenagem chamada Para Lennon e McCartney: porque vocês não sabem do lixo ocidental... Eu sou da América do Sul, eu sei, vocês não vão saber: sou do ouro, eu sou vocês, sou do mundo, sou Minas Gerais. Os Beatles haviam desistido do trabalho coletivo deles fazia pouco tempo, e suas canções, seu estilo de composição, seu modo de vida, tudo isso seguia reverberando mundo afora, para além daqueles estritos anos em que apareceram, brilharam, estouraram a fita, nos ensinaram todo um novo código e largaram de mão a banda.
Nenhum dos Beatles, nem os mais salientes líderes, justamente Lennon e McCartney, tinham a mais pálida ideia de quem pudesse ser Milton Nascimento, mas ele sabia perfeitamente com quem estava conversando, mesmo que sem esperança de resposta, pronta ou lenta: somos da América do Sul, nós sabemos de vocês e vocês nem pelota para nós.
Essa visível assimetria voltou inteira para mim esses dias, meio século depois daquela canção, quando o imenso Milton Nascimento foi fotografado numa cadeira qualquer, a dezenas de metros do palco, no meio da multidão, num megashow do gentil Paul. A cara do Milton era de felicidade, me pareceu, mas para mim aquela distância só fez confirmar a melancolia dessa diferença. Para mim, o Milton deveria estar no palco, do lado do Paul, cantando para ele e sendo ouvido por ele, em tradução imediata.
Dias depois ainda divulgaram outra foto, desta vez do Paul com o velho disco do Milton na mão, e o próprio Milton a seu lado, sentados os dois oitentões. Estavam sorrindo, acho que Milton de alegria, e Paul talvez de susto, concedendo reconhecer algum mérito. Paul é gente boa, claro, o problema não é ele: o problema é a gente não perder de vista a imensa montanha que os nossos cancionistas, como qualquer de nossos artistas, precisa vencer a cada gesto, a cada momento, para conquistar o direito de ser o que é.
Um 2024 mais ameno para eles todos, incluindo o bom velhinho Paul, e para nós todos.