Não faz muito, li uma extensa crítica a um livro recém-lançado que me fez lembrar – a crítica, não o livro – aquela deliciosa ironia de Jorge Luis Borges para com seu personagem Carlos Argentino Daneri. Para quem não lembra ou não conhece, vale dizer que é o personagem com quem contracena o protagonista, que se chama Borges também, no conto O Aleph. O conto tem um tanto de sério e mesmo de dramático, mas este Daneri é ridicularizado ativamente.
Daneri é poeta e declara estar escrevendo um poema sobre o mundo. Todo o mundo, parte por parte. (Seria uma piada de Borges contra Neruda, dizem.) E comenta, então, o narrador que a atividade mental de Daneri é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante.
Essa crítica daneriana que li entra aqui apenas para efeito de contraste, porque o assunto é um livro de valor com nervos, carne, osso, pensamento, vida: Estética e Raça – Ensaios sobre a Literatura Negra, de Luiz Maurício Azevedo (Editora Sulina). Sendo de crítica literária, tem a limitação (com perdão pela palavra) ontológica de parecer coisa secundária. Mas não é.
O tema está dado no título e no subtítulo, é atual e tem seu tanto de movediço: o que é mesmo literatura negra? Luiz Maurício tem a sabedoria de não entrar nessa disputa conceitual em abstrato: todos os textos focam em objetos específicos, como o romance O Homem Invisível, de Ralph Ellison, objeto do doutorado do autor (e um dos grandes ensaios do livro), ou a obra de Jeferson Tenório.
Dois grandes méritos se espalham pelos capítulos. Um deles é um tom debochado, que faz um enorme bem ao ambiente – crítica literária e universidade costumam se dar ares de importância e seriedade que não raro as transformam em coisa contínua, apaixonada, versátil e irrelevante. O outro é um viés confessional, que traz da vida vivida episódios e problemas que interrogam com profundidade específica os objetos literários enfocados.
Ao ler, enchi de sublinhas, anotações, divergências, exclamações, que espero continuar discutindo com o Luiz Maurício, meu camarada, uma geração mais novo. Não sei se sua reivindicação de um marxismo negro, por exemplo, se sustenta epistemologicamente. Mas isso é totalmente periférico em relação ao grande valor do livro, que começa a circular e causar reação, como deve.