Meu apreço por ler memórias ganhou novo capítulo com O Lugar, de Annie Ernaux (tradução de Marília Garcia, editora Fósforo). O livro é pequeno, menos de 70 páginas, e não entraria na minha seleção mundial do gênero; mas é muito interessante.
Francesa, nascida na província, a autora faz aqui um livro sobre seu pai, e mais genericamente sobre sua mudança de vida, que foi geográfica, porque saiu para a capital, e foi social, porque ela mudou de classe. Neta de trabalhador rural analfabeto, filha de um pai operário que chegou a ter um pequeno comércio, ela se tornou professora e escritora.
Essa alteração a fez ver coisas antes invisíveis. Não era apenas o lado evidente da mudança, mas o sutil implicado nela — o pai era um homem da classe trabalhadora de corpo e alma, que não dominava os códigos implícitos das classes letradas e confortáveis. O livro se debruça sobre pequenas cenas, olhares, recusas, desconfortos, incompreensões, que atravessam a relação da autora com seu pai, e secundariamente com sua mãe.
Se transportarmos a mesma questão para o Brasil, bá, teríamos um material farto e quase nada mapeado. A França, como outros países centrais do ocidente, estrutura-se em classes muito mais nítidas e estáveis, mais antigas, de forma que as passagens de uma a outra implicam alterações que estão mapeadas em toda a história do romance, com Balzac, e da sociologia, com Bourdieu.
Como isso ocorre no Brasil, especialmente no Brasil das últimas décadas? Escritores nascidos nas periferias ou nas lonjuras do sertão, muitos deles negros, têm publicado narrativas e poemas, de maior ou menor força, com foco talvez maior no processo de confronto social aberto do que nos bastidores éticos implicados.
O livro de Annie Ernaux ajuda a pensar no caso, e quem sabe ilumine também a nossa realidade.