Luiz Maurício Azevedo
Doutor em Teoria e História Literária
Em 1863, Abraham Lincoln, o 16º sexto presidente dos Estados Unidos da América, empreendeu uma série de medidas cujo objetivo era mudar a matriz produtiva de seu país. Dentre elas, estava o fim da escravidão. Os Estados do sul, profundamente escravagistas, não gostaram da ideia. Uma guerra civil foi travada tendo como base duas premissas dissonantes: "sem escravos, o sistema econômico americano ruiria", asseguravam os sulistas; "o sistema econômico americano está travado por causa da escravidão", diziam os nortistas.
LEIA AS HISTÓRIAS DE QUATRO NEGROS QUE VENCERAM BARREIRAS
Jorge Terra, Procurador: "Muitos negros pensam: 'esse lugar não é para mim"
Maria Miguel: "Com um cargo, parece que tu fica branco"
Marne Farias: Muitos tentam elogiar, mas não percebem o quanto aquilo tem de preconceito"
Najara da Silva: "Se pensam que vou fazer papel de vítima, não vai rolar"
Estamos em 2016 e sabemos quem estava certo. Sabemos que os EUA são a economia mais bem sucedida do planeta. Sabemos que eles têm a Apple, a Starbucks, o Google e a Amazon. Sabemos, portanto, que o norte, sob todos os aspectos, venceu. Sua vitória foi a vitória do capitalismo. Neste sistema, a melhor maneira de fazer um país prosperar é injetando nesse país toda liberdade econômica que ele puder suportar. Isso por vezes provoca uma série de desentendimentos com as elites locais.
No Brasil, país onde não há capitalismo, há somente um modo de mobilidade social: o concurso público. Aqui não há surpresa: os netos bem nascidos de hoje serão os donos de amanhã. E os filhos de diaristas de hoje serão os atendentes de telemarketing de amanhã. O Brasil é um país de herdeiros, onde a escravidão esgarçou o tecido social. E continua a comprometê-lo um pouco mais, dia após dia. É certo que, simbolicamente, todo o mal que fizemos aos negros escravizados fizemos a nós mesmos, enquanto país. É certo que, metaforicamente, toda a privação que impomos aos herdeiros de escravos deste país impusemos a nós mesmos, enquanto povo. Mas é certo também que, na prática, foram os brancos que escravizaram os negros; e não o contrário.
Um projeto sério de país passa, inevitavelmente, por um acerto de contas com as verdades óbvias da nossa própria história. Dizer isso não é render-se aos discursos panfletários, é o exercício do discernimento. Ora, brancos e negros são iguais em muitas coisas, exceto no fato de serem... brancos e negros. A negação de nossas diferenças criou um sistema perverso que multiplica os problemas raciais. Já está mais do que na hora de acabarmos com isso. Está na hora de acender as luzes.
Considere Toni Morrison. Considere Martin Luther King, Considere Malcolm X. Considere Condoleeza Rice. Considere Alice Walker. Considere Will Smith. Considere Neil Tyson. Todos nasceram nos Estados Unidos da América. Todos herdaram as delícias e as agonias de um país marcado pela segregação racial, mas são hoje referências internacionais de liderança. Considere agora o Brasil. Considere o imenso vazio de nossa representatividade racial no Congresso. Considere a ausência de negros em postos de destaque. Considere os fatos: faltam aos negros oportunidades iguais. Faltam aos negros escolas iguais. Faltam aos negros julgamentos iguais. Nunca seremos um país capitalista enquanto não pagarmos nossas dívidas. E a maior delas é com os descendentes dos seres que escravizamos. Enquanto isso não acontecer, o dia da Consciência Negra continuará sendo, também, o dia do constrangimento branco.