Uma geração atrás floresceu no Brasil uma vertente de análise literária que se chamou "literatura comparada". Parecia uma senha para os letrados ingressarem no patamar internacional da circulação de literatura. Foi uma moda perfeitamente sincronizada com o que se chamou de globalização, que parecia ser a aurora do novo dia internacionalista, em que livros e ideias circulariam sem barreiras.
Era também uma fuga ao ponto de vista nacional e ao nacionalista, que os comparatistas tratavam como a mesma coisa, quando não são. Uma posição crítica a essa moda (com a qual eu me identifico) observava que era preciso cautela com a euforia do fim das barreiras nacionais: o que circularia livremente mundo afora, por cima de barreiras e legislações das várias nacionalidades, era o capital, porque o trabalho permaneceria nacional. Bingo. Um dono de capital pode investir onde quiser; alguém que só tenha a riqueza de sua força de trabalho continua enfrentando o limite do passaporte.
A ideia de praticar tal comparação era já antiga. Nasceu nas primeiras décadas do século 20, quando críticos europeus, especialmente germânicos, cotejavam livros, autores, estilos, que aconteciam de forma peculiar conforme o país, a cultura, a língua. No Brasil, esse gigante isolacionista que se considera mentalmente o centro do mundo, comparar-se com outras culturas era um passo a dar.
Lembro isso para saudar a edição de Enquanto a Água Ferve, contos do australiano Henry Lawson (Bestiário). O trabalho foi coordenado por Ian Alexander, professor de Inglês no Instituto de Letras da UFRGS, e contou com o trabalho tradutório de cinco alunos. São 20 contos, vertidos para a dicção atual local, numa perspectiva fiel ao original: homem comum, trabalhador braçal ele mesmo, Lawson viveu entre 1867 e 1922 e escreveu para revistas lidas por gente como ele, livres mas não proprietários.
Vidas comuns, gente que trabalha, numa época que naquele país floresceu um intenso movimento sindical, que aparece nos enredos e na ética dos personagens.
O livro contém um extenso estudo do organizador que, aqui mais ainda, vai interessar ao leitor daqui: Ian estende uma longa e proveitosa comparação entre o mundo e a literatura de Lawson e o mundo e a literatura de seu contemporâneo gaúcho, Simões Lopes Neto (1865-1916). Ele era da classe proprietária (inclusive de escravos), mas soube prestar atenção ao homem comum e deu voz a ele. Há muito a aprender nessa comparação, entranhada nas formas e na sociedade.