Não tem fim de ano que não me dê aquele banzo de lembrar dos natais da infância e, por aí, da infância em si. Ainda esses dias, ouvindo o excepcional podcast Agora, Agora e mais Agora, do historiador Rui Tavares (está no site do jornal O Público, de Portugal), me veio todo um fio de lembranças. (Devo dizer que é o primeiro podcast que escuto. Aprendi que dá pra ouvir enquanto dirijo ou faço outra coisa que não requer atenção intelectual absoluta. E estou fascinado com a história que ele desdobra, uma reflexão sobre os últimos mil anos. Mil, mas volta a mais longe ainda.)
O caso é que lembrei de um momento dos meus 10 anos, não muito mais nem muito menos. Eu reunido com vizinhos, mais ou menos da mesma idade, para organizar um time de futebol da zona. “Zona” é conceito geográfico mas também afetivo: era a rua e alguma adjacência, com o acréscimo eventual de um primo frequente, por exemplo. Sem grana, como todo mundo na minha classe familiar — classe média média, sem medo de passar fome mas sem qualquer luxo de consumo —, combinamos de pegar cada um uma camiseta branca em casa para o uniforme. Já aí era bronca, porque tinha que pedir pra mãe, que só liberaria uma já gasta, entre as poucas que cada um tinha, naquele tempo anterior ao hiperconsumo atual.
O resultado foi disparatado: uma de manga curta com gola vê, outra de manga comprida, um chegou a apresentar o que se chamava de camiseta de física, hoje regata. Igual, desenhamos o escudo do time, que tinha nome, “Esporte Clube Brasil”, e um por um cortamos num tecido meio plástico — acho que a letra era a minha, caprichada. Não era muito sofisticado, mas tinha uma faixa atravessada, como o Vasco e o River.
Por que “Brasil”? Acho que tinha a ver com um sábio acordo para evitar qualquer coisa que fosse meio colorada ou meio gremista, porque já então essas definições dominavam a cena das brincadeiras. Nos reuníamos, creia-me gentil leitor, sob o palco do cinema Rosário, porque dois do nosso time eram filhos do encarregado do cinema e moravam num anexo do prédio, nos fundos. E ali, ao lado daqueles tubos de ar que refrescavam o ambiente interno, desenhamos e cortamos o escudo, combinamos o time, com titulares e reservas, e pensamos em fazer uma estreia com um inimigo distante, o time da 11 de Agosto, duas quadras pra lá.
Epa. Acabou o espaço, acabou também o ano. Mas a memória segue aqui ativada. Bom ano para quem merece! E para os que não merecem, também um ano melhor.