Desde que comecei a dar aulas de literatura, em março de 1980 — o tempo passa de um modo que vou te contar, nem te conto! —, a canção está presente no meu horizonte e no repertório letrado que abordo. (Meio cabotino o cara falar de si como referências. Desculpa aí.) E há quase 30 anos inventei, no Instituto de Letras da UFRGS, um curso de Canção Popular Brasileira.
Canção faz parte do mundo letrado, este é o ponto. Também faz parte do mundo musical, de acordo. Mas cá do meu ângulo a ênfase é pelas letras: sou músico amador sem formação regular e sou letrado profissional. E não preciso argumentar pela força das canções na formação lírica do brasileiro, certo?
Esse lero todo é desnecessário para a finalidade desta resenha: o que importa aqui é saudar a chegada de um livro sensacional, do Leandro Maia, recém-lançado e um produto maduro desse campo de estudos da canção. O livro se chama Quereres de Caetano Veloso – Da Canção à Canção (Paco Editorial).
O título tem um tanto de ousadia e pretensão — e, vai por mim, as duas se justificam. Partindo de uma análise minuciosa de uma série de aspectos da canção, dada a público no fantástico álbum Velô, de Caetano, em 1984 — meldels, quanto tempo! —, o trabalho do Leandro vai longe.
Estão ali empenhos para entender a trama de letra e melodia, mas também questões de arranjo, conexões com outras canções do mesmo disco e de outros, tendo ao fundo uma questão preciosa, que Caetano mesmo enuncia algumas vezes, e na canção Língua se explicita: a de que, de fato, a canção em língua portuguesa filosofa, articula o pensamento em níveis talvez insuspeitáveis antes da Bossa Nova, da MPB e da Tropicália, muito além do horizonte imediato de diversão e efusão, que também estão ali.
Professor de música na UFPel, cancionista, doutor em canção na Universidade de Bath, na Inglaterra, o Leandro aqui mostra que é um pensador, um formulador, que conversa com relevantes modalidades de análise brasileira, em particular Luiz Tatit, mas busca caminho. Tive a honra de ser seu interlocutor no mestrado, em parceria com Celso Loureiro Chaves, coorientador, quando nasceu essa pequena joia, que merece atenção.