Está difícil de enxergar qualquer coisa panoramicamente neste 2020. Trump, o presidente brasileiro, a pandemia, tudo parece um pesadelo sem começo nem fim. Daí esse peso que sentimos a toda hora, em qualquer lugar, mesmo dormindo. E se abrimos as janelas para ver mais, ali adiante, ao alcance da vista, tem mudança climática, crise social, economia sem emprego para massas de gente.
Um lado que é duro mas promissor dessa entalada – dessa esnucada, como se diz popularmente – está no aparecimento de temas e figuras que jaziam nas sombras. Estamos lendo e vendo relatos sobre racismo, homofobia, machismo e, nosso tema aqui, abuso sexual. Eis uma boa porta de entrada para Ao Pó, romance de Morgana Kretzmann (editora Patuá).
Narrado em primeira pessoa como testemunho que ora lembra do passado, ora está no presente imediato, o romance é a palavra de Sofia, atriz, que sai de uma cidade pequena do Rio Grande do Sul para o mundo do Rio de Janeiro, nossa Hollywood. Essa trajetória é marcada por uma sombra que se dá a ver nas primeiras páginas, quando ela sai de sua casa, deixando sua irmã menor, sua mãe e seus parentes.
Isso seria pouco, mas é muito, é demasiado: Sofia era abusada regularmente por um tio, e ao sair intui, sente, sabe, teme, profetiza que a mesma desgraça vai alcançar sua irmãzinha. Uma culpa multiplicada por duas vezes.
Daí por diante, a vida de Sofia transcorre sob o signo dessa sombra. “A vergonha, que antes era um monstro que dormia quietinho embaixo da minha cama, havia despertado, e ele, a imagem dele, do meu tio, voltou a assombrar as minhas noites e os meus dias”, diz Sofia.
A mesma sombra trágica vai reencarnar em dois namorados sucessivos. Com esses três homens e o sofrido caminho da protagonista se estrutura a história, na qual Sofia encontra (pouco) e desencontra (muito) a felicidade, numa trajetória narrada com mão segura e ótima fluência, até um desfecho de grande impacto.