A miudeza da vida é que é. Varejo puro. “O estilo incessante da realidade”, disse o Borges, o outro, o portenho, o Jorge Luis. A realidade tem essa mania de ser imparável, incontível, incontável. A ciência e a história tentam fazer sua parte: procuram enxergar linhas de força, constâncias, formatos que confiram inteligibilidade ao caos. Acompanhar a coisa toda na sua incessante rebrotação é impossível, como o mesmo Borges demonstrou com seu miserável Funes, o memorioso.
A ficção de Ricardo Lísias tem a elogiável vontade de transbordar dos limites estreitos que parecem separar fato e invenção, como se viu exemplarmente num livro sensacional, o Diário da Cadeia, assinado por Eduardo Cunha (pseudônimo), editora Record. Agora ele lançou o Diário da Catástrofe Brasileira, também da Record.
Agora, trata-se de um diário de anotações assinado pelo autor ele mesmo. O ponto zero cronológico é 28 de outubro de 2018, quando foi eleito o atual presidente. Qualquer pessoa sabia da natureza do que viria com ele: truculência, ecocídio, misoginia, combate à ciência, política tradicional. Tudo estava já inscrito na trajetória, nas palavras e nos atos de seus quase trinta anos de vida pública.
Lísias então se botou a escrever um diário acompanhando o que aconteceria entre a eleição e o dia final do ano de 2019. Voo baixo, não para registrar fatos banais, mas aqueles flagrados como marcantes do processo político central do país. Sua lente, a ideia de descrever a estética vencedora, da violência, da anulação da alteridade, da demonização literal dos derrotados.
O livro é difícil de ler. Sua linguagem é fluente e nítida; o problema é a realidade incessante que ela captura e repõe em frases e imagens. Lísias foca nos processos de pregação e validação simbólica que o bolsonarismo emprega, mas não esquece de dissecar também pensadores de esquerda que erraram feio em análises públicas.
O resultado geral é desolador para uma visão ingênua, e radicalmente iluminista em seu sentido profundo. Para dar apenas um exemplo, risível e terrível ao mesmo tempo, Lísias demonstra, por a + b, que Sérgio Moro tem como modelo mental (e estético) o Batman. Sim, o Homem-Morcego. Sério. Leia lá e veja. E se desole. E se anime.