1719, Londres: saía a primeira edição de um romance que todo mundo conhece, mesmo sem ter lido – Robinson Crusoé. Seu autor, Daniel Defoe, postulou a existência de um sujeito com esse nome, que teria vivido isolado da civilização ocidental por mais de 20 anos. E o tal sujeito relata ele mesmo suas histórias. Consta que seus leitores naquele momento ficaram de orelha em pé por um motivo agora banal: afinal, existira mesmo um cara chamado Robinson, que fez o que o livro conta?
Não, não tinha existido esse cara; mas é como se ele tivesse mesmo respirado o ar que qualquer leitor respira. Segundo uma reflexão inteligente, estava ali sendo criado, ou consolidado, o conceito moderno de ficção. Até então, claro que já havia histórias inventadas, mas elas ocorriam com deuses ou com gente inacessível ao comum dos mortais — Robinson, ao contrário, era gente como a gente, cruzava as mesmas ruas, embarcava no mesmo cais, só que não existia.
1819, Nova York: nascia Herman Melville, que aos 32 anos de idade daria ao mundo outra maravilha, esta muito mais difícil, o romance Moby Dick. Nesta altura, o leitor não perguntava mais se a história era real ou não, se tinha mesmo existido aquele Ishmael que relata a história da caça ao cachalote branco por parte de um monomaníaco capitão, Ahab. Era um demente no comando, subjugando toda a tripulação e expondo-a à morte por capricho.
O romance traz em si tanta realidade empírica que era difícil até mesmo formular a pergunta — em suas páginas há tratados de caça às baleias, descrições precisas sobre o uso do óleo delas na vida cotidiana da época, assim como notícias sobre os afazeres triviais a bordo. Em outra parte, porque os leitores já estavam acostumados a compreender o papel das histórias de aspecto real que o romance oferecia, nos mesmos jornais que traziam as novidades da vida empírica.
2019, Terra: nosso tempo embaralha perversamente as duas dimensões, a real e a ficcional, e conhece muitos Ahab pelo mundo afora. Um antídoto brasileiro está no site aosfatos.org, que compilou e analisou 240 declarações falsas ou distorcidas do presidente, em 218 dias de governo. Tudo real.