Girona e o surrealismo sempre souberam conviver bem. Muito bem, aliás. Salvador Dalí nasceu ali nessa província. Em Figueres, onde nasceu, está o Teatro-Museu Dalí, uma obra de arte ao ar livre e que abriga seus trabalhos. Surrealismo na veia. Assim como também parece surreal o que está fazendo o mais novo famoso da região, o Girona FC.
Quando você chega ao Estádio Montlivi, percebe que tem muito de Dalí na história escrita por esse pequeno clube nesta temporada. É preciso respirar fundo e parar para interpretar a fundo para entender como passou boa parte da La Liga à frente de Real e Barça e está agora com um pé na Liga dos Campeões.
Há um certo ar de magia em Girona, uma das quatro províncias da Catalunha, e com capital homônima. Não foi de graça que seus templos medievais serviram de locação para Game of Thrones.
Há vilas medievais inteiras, igrejas romanas, vulcões, praias recortadas de mar azul da Costa Brava. Há na Capital as muralhas e o casario colorido esparramado ao longo do rio Onyar, que refletido nele oferece imagens magníficas. E há o Girona FC, o filho mais novo desse lugar mágico e que está na crista da onda.
Na última quinta-feira (11), saí de Barcelona e peguei uma hora e quinze minutos de autopista (perfeita) para conhecer o clube-sensação da Espanha. Quando se chega ao Estádio Montilivi logo se percebe que só o trabalho árduo e o planejamento são capazes de fazer o time se infiltrar no G-4 da La Liga a temporada inteira.
O estádio é acanhado. Lembra muito, pelo aspecto, o Passo D'Areia. Sem a quadra de grama sintética do lado, é bom frisar. Fica claro que o estádio foi ampliado e ajustado conforme o clube crescia. Hoje são 14 mil lugares. Porém, cerca de 6 mil foram criados com a instalação de um segundo anel com arquibancadas superiores.
A Uefa já avisou que, em caso de Champions ou Liga Europa, esses assentos provisórios estão vetados. Ou seja, o estádio poderá receber apenas 8 mil pessoas. Tudo bem, o clube fechou este ano com 7,8 mil abonados, ou seja, quem garantiu ingresso para a temporada inteira. Ao todo, são 15 mil sócios. Se levarmos em conta que a cidade tem 100 mil habitantes, é um percentual dentro dos padrões.
O plano do clube é seguir em expansão e começar a abocanhar a fatia de toda a província. Falamos aqui de um mercado de 700 mil habitantes. O Girona não se importa de ser, para muitos, o segundo clube do coração. Tanto é que compartilha com o Barça do mesmo orgulho catalão. O Espanyol é o rival de ambos.
Só que o clube pretende, ali na frente, ser o clube de quem é de Girona, da província toda, e pescar alguns outros fãs no restante da Catalunha.
O projeto de crescimento está muito bem desenhado. Esta é apenas sua segunda passagem pela primeira divisão. Em 2017/2018, subiu e caiu. Foi neste ano que o City Group chegou e comprou 47,9% das ações. Hoje, os xeques têm 44,3%. Pepe Guardiola, irmão de Pep, tem outros 44,3% — os 11,4% restante estão pulverizados.
A relação com o City Group é de colaboração, de consultoria em decisões e de estabelecimento de projetos. Não há injeção de rios de dinheiro, como houve agora no Bahia ou acontece na matriz, o City. O atual grupo tem dois jogadores apenas cedidos pelo City, os brasileiros Yan Couto e Savinho. Tudo bem que são dois dos melhores, mas são dois em um universo de 27, 28.
Tanto é que o Girona precisou buscar suas próprias soluções para sair da Segunda Divisão. Perdeu os playoffs em 2019/2020 e 2020/2021 e só foi subir em 2021/2022. Em 2019/2020, contra o Elche, levou gol aos 51 do segundo tempo. Em 2020/2021, venceu o Rayo em Vallecas por 2 a 1 e levou 2 a 0 em casa, na volta.
O clube usou todas essas dores para definir um DNA. A partir daí, adotou o lema "Tossuts", palavra em catalão que, no português, pode ser traduzido como teimoso. Para o clube, o significado vai mais a fundo: determinação, renascer, persistir, levantar-se.
Ser "tossut" virou marca. Está em camisetas na pequena loja do clube. Também está estampado no estádio, entre marcas de patrocinadores locais. Essa é outra característica. O Girona faz questão de ser local, de ser catalão, de ser de Girona. Os êxitos fazem o clube escalar nos rankings da La Liga.
Os ingressos comerciais, que eram de 8 milhões de euros em 2017, hoje são de 18 milhões de euros e correspondem a 53% da receita. No raking de salários, é o 13º, com 52 milhões de euros anuais — folha de 4,3 milhões de euros (cerca de R$ 23 milhões). Para comparar, o Real tem folha anual de 727 milhões de euros. O Atlético, rival deste sábado e pela terceira vaga na Champions, gasta 296 milhões (só atrás do Real).
— Somos a sétima marca mais valiosa da La Liga, conforme um estudo da YuoGov — orgulha-se o CEO Nacho Mas-Bagà, 39 anos e há quase 10 no cargo.
Bagà deixa claro o orgulho do Girona de ser um clube pequeno, da cidade, com suas raízes. Há uma preocupação em impedir que todo esse sucesso mundial faça o Girona flanar e tombar ali na frente. O crescimento será inevitável, mas ele acontecerá com o controle das rédeas. A chance de jogar a Champions encanta, faz todos suspirarem.
Mas a realidade, dizem, é manterem-se firme na La Liga e crescendo. Tanto é que o projeto de reforma do estádio e ampliação só será colocado em prática daqui dois anos. Até lá, seguem no pequeno Montlivi. Até porque o que está acontecendo ali já seria suficiente para deixar Dalí com o bigode ainda mais em pé.