Em 2018, o preparador físico Márcio Faria Corrêa desembarcou em La Paz para fazer parte da comissão técnica de Vinícius Eutrópio no Bolívar. Foram seis meses na Bolívia, tempo suficiente para Márcio aprofundar seus estudos sobre a reação do atleta à altitude e sentir na pele os efeitos que causa nos forasteiros.
Márcio trabalhou na Ferroviária neste ano e, agora, está à espera de um novo projeto. Enquanto isso, abastece com seus estudos o seu site (marciofariacorrea.com). Confira nosso papo.
Faz parte da estratégia de jogo do Bolívar usar os 3,6 mil metros de altitude?
Certamente. Quando estivemos lá, com o Vinícius Eutrópio, era uma das estratégias principais. Nesse jogo em casa, não é só usar a altitude. O adversário chega ao aeroporto com 4,07 mil metros de altitude, é um pouquinho pior. Depois, tem o deslocamento de ônibus por vias sinuosas, isso dificulta a estabilidade do atleta. Claro, cada um reage de uma forma à altitude. A ideia é sempre que o grupo chegue, se hidrate bastante e se encaminhe o mais rapidamente possível para o jogo. Quanto mais tempo ficar exposto à altitude, mais situações de vertigem terá. O ar rarefeito com o oxigênio alterado dificulta a absorção que temos.
Menos absorção, mais problemas físicos. É essa a conta, não?
Quem vive ao nível do mar tem menos glóbulos vermelhos, responsáveis por carrear o oxigênio pelo nosso organismo. Para se igualar a uma pessoa que vive numa altitude como a de La Paz, precisa de dois meses de estágio. É esse o tempo necessário para adquirir o número de glóbulos vermelhos e refazer sua composição sanguínea para competir de igual. O conselho que posso dar é que vá para a competição o mais rapidamente possível e que não se escale 11, mas os 16 jogadores. E que se treine dessa forma. Será preciso chamá-los (os reservas) antes do que se imagina. Isso era consenso nas conversas com os profissionais dos clubes que nos enfrentavam em La Paz . Quem está numa Libertadores ou Sul-Americana sabe desses detalhes.
Você trabalhou com o Beñat San José, que está de volta ao Bolívar?
Ele tinha saído. É vitorioso, foi bicampeão boliviano, é equilibrado. Conheço-o pessoalmente. É técnico promissor, inteligente, já deve ter estudado o sistema do Inter. O jogo em La Paz será difícil. Outro detalhe do jogo na altura é a grande mudança na velocidade da bola. Há atletas que passam 90 minutos errando passes. Quem entende essa velocidade e tem bom domínio técnico, consegue executar melhores passes. Mas isso depois de entender essa mudança.
Essa mudança na velocidade da bola altera um jogo de passes curtos e posse de bola, como o Inter pretende fazer?
Passe curto, rasteiro, não. rasteiro. Essa mudança na velocidade e quase imperceptível. Agora, aparece com passe com a bola elevada, cobranças de falta, de escanteio e em passes longos.
Como foi a sua adaptação, com preparador físico, à altitude?
Havia prestado consultoria, mesmo sem ter trabalhado na altitude, para profissionais e clubes. Estava, portanto, apto para conviver e entender os efeitos. Só que, na pele, nunca tinha sentido. Todos os meses, quem chega faz exame para ver a constituição do sangue. Existe um conselho que as pessoas mais velhas sempre dão em La Paz: andar devagarito, comer poquito e dormir solito, para que seu corpo se organize. No primeiro treino, conversei com os jogadores no campo, passei o treino e, como sempre fiz, fui acompanhá-los naquela corrida leve, o trotezinho. Corri 200 metros, dei uma parada e fingi que não tinha acontecido nada. O coração disparou. O efeito da altitude se sobrepôs, vi que não adiantava forçar.
Como vocês pensavam o jogo contra visitantes vindos do nível do mar?
Sempre planejávamos assim: daremos a bola para o adversário, porque ele terá de jogar, fazer ultrapassagens e se perderá. Muitas vezes, esperávamos o adversário nos primeiros 30 minutos. Usávamos marcação alta, mas deixando jogar. Piques longos, atletas não têm condição . Leva cinco minutos para se recuperar de sprint de 20 metros. Lógico que alguém sempre tentará quebrar a linha em um passe longo. Quando o rival faz esse passe, ele sai em velocidade diferente. Na maioria das vezes, o atleta dá o sprint em vão. É um jogador a menos na volta do time. Mesmo quem tenta controlar e usa os dribles, é difícil fazê-los em velocidade para quem não está acostumado. Acrescente-se a isso o fato de o Bolívar ser um time muito organizado.
Você se refere à questão tática?
Hoje, a organização não passa só pelo sistema tático. O Bolívar é parceiro do Grupo City. Na época em que estávamos lá, haviam iniciado a construção do CT de alto rendimento. Acabei fazendo boa parte da consultoria de equipamentos e espaços que estavam sendo criados e da metodologia e, sobre como seria comportamento nos âmbitos técnicos, táticos, físicos e socioeconômicos dos atletas. O Bolívar está pensando em muitos padrões que muitas equipes brasileiras não pensaram ainda. O pessoal ainda se engana ao pensar em tecnologia. Ela ajuda, mas não faz tudo.
Por fim, mesmo os clubes bolivianos padeciam quando iam jogar em La Paz?
Eles sofrem bem menos. A maioria dos clubes são formados por jogadores bolivianos, que estão acostumados a jogar na altitude. As câmeras hiperbáricas, que hoje chegaram ao Brasil, nós já tínhamos lá para adaptar jogadores contratados que vinham do nível do mar. O atleta cumpria os processos de treino e ficava uma hora na hiperbárica, para respirar oxigênio puro. Ajudava na recuperação e na aclimatação.
Quanto tempo levava o atleta para se adaptar?
Um mês, pelo menos. O Bolivar tem 45 dias de pré-temporada, tempo bom para o jogador ficar em um padrão de 70%. Tem outro detalhe. Quem desce para jogar no nível do mar, tem coisas negativas que traz, como a retenção hídrica. Sabe aquela perna inchada? Mas há meios na preparação física que amenizam bastante esse efeito.