Abel Ferreira é um português de temperamento italiano. Mas é também um sujeito sagaz. Por isso, caiu tão bem no Palmeiras e sobreviveu ao moedor de técnicos que se tornou o futebol brasileiro. Sobreviveu, não. Tornou-se, em menos de dois anos, um dos mais vitoriosos e um nome cotado para suceder a Tite depois da Copa do Mundo.
O que dá uma noção do quanto Abel se consolidou aqui no Brasil e acelerou uma trajetória até então restrita ao terceiro escalão da Europa. Afinal, aos 43 anos, o português nascido na pequena Penafiel, uma cidade encantadora a 30 quilômetros do Porto, é cotado para assumir a Seleção Brasileira, um dos maiores patrimônios nacionais.
O Palmeiras bicampeão da Libertadores, campeão da Copa do Brasil, da Recopa Sul-Americana e do Paulistão é a parte mais visível do trabalho de Abel e sua comissão técnica, composta por outros quatro portugueses, além dos auxiliares e treinadores fixos, como os porto-alegrenses Andrey Lopes e Rogério Godoy. Por trás dos resultados, há um trabalho meticuloso, quase obsessivo na atenção aos detalhes, sejam eles técnicos, táticos e, principalmente, humanos.
Abel é um treinador de ideias claras de jogo, obcecado por tática e pelos movimentos de um jogo que fica mais complexo e competitivo a cada dia. Mas é também dono de uma sensibilidade ímpar que o ajuda a ler rapidamente os mapas do vestiário e corrigir as rotas. É a tal "cabeça fria", que está no livro com o qual abriu a caixa preta do Palmeiras que comanda com sucesso desde novembro de 2020.
Se você ainda não leu "Cabeça Fria Coração Quente", me permita dar uma sugestão: leia-o agora, imediatamente. O diário de um ano de trabalho esparramado em 400 páginas vai além de um livro de futebol ou da construção de um time. É um curso rápido de gestão de pessoas. É também uma lição de como se mover para a frente no seu trabalho, seja ele qual for, sem medo de obstáculos ou desafios.
Em resumo, ao compartilhar suas ideias e plano de jogo, o português e sua comissão portuguesa mostram que o perfume da vitória só é doce, como aquele dos melhores frascos, ao final. No percurso, ele tem o cheiro do suor. Se não tiver, meu amigo, pode ficar certo, não existe o final.
Abel, é claro, encontrou um contexto perfeito para dar o salto na carreira. O Palmeiras aproveitou a década passada para se reestruturar como clube e fazer as fundações de um projeto sólido como uma rocha. Paulo Nobre, um torcedor fanático e herdeiro de uma fortuna, assumiu o clube em 2013 na Série B e com dívida perto de R$ 300 milhões. Escolado pela parceria com a Parmalat, nos anos 1990, o Palmeiras soube usar o dinheiro injetado por Nobre para, além de fazer time, melhorar estrutura e se profissionalizar em todos os aspectos.
Quando recebeu, lá na grega Salônica, a sondagem do Palmeiras, Abel mergulhou na internet para saber que clube vestia aquela histórica camisa verde. Também buscou informações com amigos. Em poucas horas, entendeu que a chance de mudar de patamar como técnico havia atravessado o mundo para encontrá-lo no pequeno Paok.
Surpreendeu-se quando foi chamado pelo clube paulista para uma entrevista via Skype. Nunca tinha acontecido isso na sua curta trajetória, de base do Sporting, time B e principal do Braga e Paok. Surpreendeu-se mais ainda quando os dirigentes do Palmeiras chegaram para entrevistá-lo municiados de todas as informações sobre ele. Ali, veio a certeza. Embora o Brasil fosse o país em que mais se morria de covid naquela época e o calendário tivesse três jogos por semana, sua hora como técnico de ponta havia chegado.
O mérito de Abel foi entender rapidamente como funciona o Brasil. O futebol nada mais é do que um estrato do país. A nossa sociedade está ali, com a ascensão rápida e sem base dos atletas, a intolerância dos torcedores, a falta de preparo de muitos dirigentes. Tudo isso submetido a um relógio insano, que corre mais do que o tempo. Usando de método, de disciplina e de uma obsessão pelo trabalho, ele sobreviveu a isso.
Porém, há o outro lado de Abel, o do coração quente, o do título do livro. Esse, ele ainda precisa domar. Talvez por viver tão intensamente o futebol, por se dedicar tanto, ele ainda tenha dificuldade de desfrutá-lo. Ele assume que essa obsessão pelo trabalho faz dele, muitas vezes, mau filho, marido e pai. Mas sabe que é ela a responsável por ele ser, hoje, um técnico de ponta.
Esse dilema o faz sofrer e o deixa armado. Os árbitros sofrem. Ele e sua comissão são recordistas de cartões. As entrevistas são tensas, quase um embate. Há uma relação distante e nervosa com os jornalistas. Uma relação em que ninguém ganha. É o coração quente demais. A cabeça fria, é claro, compensa. O campo mostra isso. Porém, quando conseguir equilibrar isso, Abel vai sorrir. Como estão fazendo, agora, todos os palmeirenses.