Marcos Guilherme foi o personagem da semana. Sim, o criticado e quase crucificado Marcos Guilherme. Foi dele o melhor lance dos últimos dias, que nos fez sair da letargia e processar o que vemos e não absorvemos. Marcos Guilherme foi a voz, mesmo que mansa e quase inaudível, a nos sacudir para que se discuta a máquina de cancelamento que funciona a pleno nestes dias digitais.
Ninguém escapa dela. Pouco importa o setor da sociedade. Porém, há um ponto em comum: quanto mais proeminente for o alvo, mais ácida ela se torna. E, podem ficar certos, corrói rapidamente quem sofre com as críticas. De dentro para fora.
O caso de Marcos Guilherme amplificou-se por uma decisão certeira do Inter, de mostrar em seu vídeo de bastidores do 6 a 1 no Olimpia que o jogador do campo é também um ser humano fora dele. É como se o clube tivesse tirado a capa de super-herói que o atleta de ponta parece vestir e o mostrasse na versão original.
Se você não assistiu a esse vídeo, recomendo que o faça. Mostra que, ao final da partida, naquela roda para a oração, Marcos Guilherme pediu a palavra. No dia a dia, ele é um sujeito pacato, raramente ocupa a linha de frente. Por isso, foi uma surpresa geral. O atacante colocou o dedo na nossa ferida. Leia e reflita:
— Só queria agradecer ao professor, que foi muito homem ao me colocar para jogar, na minha situação. E depois a vocês. O que fizeram por mim, mano… sei que posso estar longe do meu nível, do que posso jogar. Mas tenho me dedicado. Deixar de correr, não vou. A fase boa vai voltar. Só quero agradecer. O dia de hoje, putz, vai ficar marcado na minha vida.
Marcos Guilherme está jogando abaixo do que se esperava. Ele mesmo sabe disso. Mas, se você rolar o feed das suas redes sociais, terá a impressão de que ali está alguém que cometeu um crime. E que deve, usando uma linguagem digital, ser cancelado.
Esse achincalhe em série abalou o atacante — até porque as críticas saíram do campo e entraram em sua vida privada. Algo tão comum que até já se fixou na nossa paisagem. Não pode ser assim.
Quando Marcos Guilherme pediu a palavra, ali estava o ser humano na essência. Aquele que existe por trás do ídolo e volta para casa depois do jogo para abraçar a família. As redes sociais se esquecem de que ele existe. Não só elas, é preciso admitir. Nós, que empunhamos uma caneta ou um microfone, também damos nossos escorregões. Por vezes, desligamos aquele alerta que toca quando avançamos o sinal.
O mais esquisito disso é que, nessa selva digital, também somos vítimas do tribunal sumário das redes. Enfim, são novos tempos, e temos de aprender a lidar com essas mudanças que chegam em altas velocidade e proporções.
Talvez esteja nesse espectro de novidade a falta de bom senso digital que impera. Uso o “talvez” porque engatinhamos nesse ambiente virtual — embora a academia já se debruce sobre o tema há algum tempo.
Crítica ou ataque
Doutor em Ciências da Comunicação e professor de Comunicação Digital da Feevale, meu amigo e ex-colega de mestrado Alisson Coelho pesquisa as críticas em rede há oito anos. Fez a dissertação de mestrado, a tese de doutorado e alguns artigos abordando esse octógono digital. Para tentar entender um pouco mais sobre o tema, fui me servir do conhecimento dele.
O ponto central, me diz o Alisson, é que “há uma dificuldade para diferenciar a crítica do ataque”. Algo que se tornou corriqueiro em qualquer setor da sociedade. Se transferirmos do ambiente virtual para o real, é como se você desse um murro em cada um que o contrariasse.
Se centrarmos nosso foco apenas no universo do futebol, percebe-se que se mixou o cidadão com o jogador (ou o treinador, o dirigente, o jornalista). É como se o erro de passe, de contratação ou uma mera análise do jogo fossem transgressões sociais. Julgadas em um tribunal no qual, como diz o Alisson, “se faz ao mesmo tempo o papel de juiz, promotor e executor”.
Há uma urgência em discutir o tema e, principalmente, tomar medidas sérias. Não se quer aqui, é bom frisar, limar a liberdade de expressão de ninguém. Mas é preciso discutir e definir a linha tênue existente entre essa liberdade e o achincalhe, o desrespeito.
Foi para reivindicar esse debate que os clubes ingleses, em um movimento coletivo, decidiram se ausentar das redes sociais por quatro dias, entre a sexta-feira, dia 30 de abril, e a última segunda (3). Os clubes se cansaram dos ataques racistas aos seus jogadores e também às ofensas que eles vinham sofrendo. Como essas que fizeram Marcos Guilherme sucumbir. A pergunta que fica é: até quando suportaremos calados? Criticar, sim. Cancelar, não.