Há um fato histórico na eleição para presidente do Inter. Maior até do que a corrida de quatro candidatos à sucessão de Marcelo Medeiros. Pela primeira vez, em 111 anos do clube, uma mulher está sentada na cadeira de presidente do Conselho Deliberativo. A veterinária, contadora e mãe Lenize dos Santos Doval, 57 anos, assumiu o cargo e conduzirá o pleito mais disputado do clube nas últimas décadas.
Um passo de tamanho gigante e um marco na luta pela igualdade de gênero. Afinal, o Conselho sempre se notabilizou por ser um ambiente masculino. Tão masculino que apenas em 1984 teve, pela primeira vez, um assento ocupado por uma mulher.Depois disso, a representatividade feminina teve avanços tímidos.
Apenas nesta última década foi que ele se acelerou. O atual colegiado conta com 26 mulheres. Como número absoluto, não deixa de ser significativo, mas ainda está longe de ser representativo se levarmos em conta que são 342 conselheiros. Ele equivale a apenas 7,6% do total.
— Estamos chegando ao poder, é histórico. Até pouco tempo atrás, o futebol era um ambiente masculino. Mais ainda o Conselho. Até se passou a ver mais mulheres na arquibancada neste começo de século, mas dentro do clube e na política dele eram apenas homens. As mulheres chegaram e ocuparam cargos que eram restritos ao universo masculino — resume Lenize.
O Inter é tratado como modelo no Brasil em relação à presença feminina no seu estádio. Em outubro de 2020, a Central de Atendimento ao Sócio estima que 23% dos associados sejam mulheres. A própria história de Lenize com o Inter resume essa presença feminina nos Beira-Rio. Ela chegou a frequentar o estádio com o pai, nos anos 1970.
Voltou a ser assídua no Beira-Rio em 2015. O marido, Everson, também é colorado, mas é mais seletivo na escolha dos jogos. Lenize, não. Em 2017, assistiu a todas as partidas da Série B. Inclusive aquela contra o Luverdense, com sensação térmica negativa na arquibancada superior, onde costuma marcar presença. A filha, a advogada Aline, 37, já se acostumou com o coloradismo da mãe. Mas ainda sente calafrios com o receio de que alguma briga no estádio possa respingar nela.
— Lá em casa, é o contrário, a filha se preocupa com a mãe. Com o tempo, depois de tantos jogos, tu já começas a perceber no ar quando algo está errado no estádio, consegue fazer uma leitura do ambiente e se distanciar de confusão iminente — defende-se Lenize, como que se explicando para a filha.
A trajetória política de Lenize no Inter é tão fulminante como casual. Em 2018, ela foi convidada por um dos amigos de arquibancada a participar de uma reunião aberta do Povo do Clube. Gostou do debate travado ali e assinou ficha. Meses depois, um integrante do movimento consultou-a se poderia incluir seu nome na chapa para renovação do Conselho.
Ela autorizou, mas nunca imaginou que poderia ser eleita. Acabou ficando com uma da vagas e tomou posse no começo de 2019. Semanas depois, os grupos políticos se alinharam por uma chapa plural e de consenso para a presidência do Conselho. O Povo do Clube indicou o nome de Lenize e, assim, a torcedora virava primeira secretária – ela e a segunda secretária, Luciana Gomes, se tornaram as primeiras mulheres a integrar a Mesa na história do clube.
Sucessão
Só que a política do Inter é borbulhante e imprevisível. No final de setembro, José Aquino Flôres de Camargo se licenciou do cargo de presidente para virar candidato à sucessão de Medeiros. Guinther Spode, seu vice, assumiu. Mas nem esquentou a cadeira. Dias depois, ele também se licenciou para disputar a eleição.
Assim, Lenize, a terceira na hierarquia do Conselho, virava presidente para os últimos quatro meses de gestão. Foi tão surpreendente que o marido estava no carro quando ouviu no rádio a notícia da licença de Spode. Imediatamente, telefonou, aos risos:
— Tu és a nova presidente do Conselho do Inter?
Eloquente e conciliadora, Lenize desfruta de trânsito em todos os movimentos. O que vale ouro no enfezado ambiente eleitoral do Inter. A prova de sua popularidade veio através das mensagens no celular depois da posse, vindas dos diferentes matizes políticos do clube. É com isso que conta para amainar os ânimos e conduzir o pleito com tranquilidade.
O primeiro ato foi se distanciar do seu movimento, para manter a neutralidade. O segundo, convocar reunião com todos os grupos políticos, para estabelecer diálogo e, com sutileza, estabelecer limites para boa convivência. Essa sutileza, aliada à objetividade, será decisiva para que, até 15 de dezembro, data do segundo turno e da eleição de renovação de metade do Conselho, nada saia do tom. Lenize sabe que, além da eleição, carrega a missão de mostrar que, sim, uma mulher pode ocupar um dos cargos mais altos de um clube:
— Não é uma guerra. Nós, mulheres, lutamos pelo espaço, mas lado a lado. Que nos demos as mãos e sigamos conquistando esse espaço. Na arquibancada, já conseguimos. No Conselho também.