Dia desses conversando com uma colega jornalista a respeito do racismo que estrutura nossas relações sociais, políticas e econômicas no Brasil e ela dispara uma frase que até hoje ecoa na minha cabeça:
— A branquitude não nos dá um dia de paz.
A branquitude - conceito que se você ainda não conheceu, corra que ainda dá tempo - trata sobre o ponto de onde falam e experienciam os brancos em relação ao mundo. Pressupondo que todos nós falamos e sentimos de algum lugar, a ideia é admitirmos uma mudança de perspectiva, considerando que a “ordem natural” não é branca. No Brasil, muito antes pelo contrário. Se considerado o percentual da população autodeclarada negra (mais da metade), o “normal” passaria longe da pele clara. Sendo assim, por que raios as estruturas e espaços de poder são majoritariamente brancos?
É preciso estudar para compreender.
E voltaremos a um regime nefasto chamado escravização. O Brasil ostenta o vexatório título de último país das Américas a abolir a escravatura. E não somente isso: ao encerrar o regime, não se preocupou sequer com os filhos e filhas negras da Nação. Além de estuprar e açoitar mulheres negras, separa-las de seus filhos, espancar brutalmente homens e os fazê-los trabalhar como animais de carga, sem oferecer nada em troca pela força de trabalho, senhores e senhoras brancas fizeram vistas grossas à população que foi jogada às ruas, sem sequer oferecer um projeto de educação e renda, aos que foram proibidos de estudar, ler e mesmo falar.
E mais: criou leis para criminalizar os que estavam nas ruas, como a lei da vadiagem. Ora, quem estava na rua? Quem teve a dignidade arrancada por senhores e senhoras brancas. Tenha santa paciência!
O racismo, senhoras e senhores, estruturou as relações neste país. E não só ele: a escravização e o sistema colonial se fazem presentes até hoje em uma nação que não deixa o que chama de “serviçais” usarem o elevador principal. Que raios de nação é essa, que continua batendo uma campainha para ser atendida por senhoras negras dentro do conforto de seus lares? Que assiste calada a um menino cair do nono andar de um prédio por que a patroa mandou a mãe dele passear com o cachorro? Não é sobre cotas. É sobre humanidade.
É urgente que nós, brancos, ouçamos o que a população negra tem denunciado. É imperativo promover ações afirmativas, como bem ressaltou o professor universitário e advogado gaúcho Lúcio Almeida, em seu brilhante “Direito Constitucional às Cotas Raciais: A contribuição de Joaquim Nabuco".
A ação da Defensoria Pública da União (DPU) contra o programa de trainee voltado a candidatos negros e negras é um vexame institucional. E também inconstitucional.
— Viola todos os princípios presentes na nossa constituição e definidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Adpf 186 que tornou constitucional a adoção das cotas raciais. Há na DPU um claro racismo institucional por parte de um integrante, defensor, em não reconhecer os direitos das minorias — assegurou Almeida à coluna.
Para o advogado Fabiano Machado da Rosa, a ação escancara o racismo presente nas instituições públicas:
— A ação da DPU apenas confirma o que já sabemos: há um racismo no nosso país tão arraigado nas instituições públicas que a “negação” se torna um obstáculo absurdo à construção da equidade e democracia no Brasil —afirmou.
Faria bem, aliás, a DPU se admitisse o grave erro cometido e ouvisse as palavras do ministro do STF, Luis Roberto Barroso, que aliás tem por missão resguardar a constituição:
— O Brasil é um pais, pelo último Censo que ainda é o de 2010, onde pelo menos 50 por cento da população é Negra. E o que você vê é uma total ausência de pessoas Negras, pretas e pardas como se tem utilizado, em cargos relevantes do país. Seja na iniciativa privada, seja na vida pública. Isso tem que mudar. Se (ao menos) 50 por cento das pessoas são Negras e, portanto, é preciso romper este cerco de discriminação e opressão. Por que são discriminados e oprimidos? Por que existe uma herança da escravidão, portanto há uma dívida histórica, pessoas que foram trazidas à força. Depois com a abolição, não foram integradas a sociedade, foram atiradas a própria sorte e, portanto, começa um processo de marginalização. O país tem um racismo estrutural que exclui o acesso dessas pessoas, e além do que, se você quer ter um país justo, se você quer tirar os jovens da atratividade do crime, você tem que criar símbolos. Os brancos tem seus símbolos e sucesso e os negros também tem que ter os seus símbolos de sucesso. O menino tem que se inspirar é no ministro do Supremo, no ministro de Estado, no CEO de uma grande empresa e não no traficante. Portanto, pra você fazer um país que seja verdadeiramente para todos, você tem que ter símbolos inspiradores e motivacionais para todo mundo. E, portanto, se 50 porcento da população é Negra, é um absurdo o nível de exclusão que nós temos.