Em tempos de pandemia, a gente reclama de muita coisa. De não poder abraçar. De não poder sair. De ter que faxinar a casa sozinha. De engordar durante a quarentena. Da internet que não funciona.
Nesta semana, recebi dois relatos que me fizeram parar de reclamar das coisas que pouco significado têm. Eram duas mães de crianças autistas. Separadas por quilômetros de distância. Mas com um relato absolutamente próximo: como lidar com o julgamento dos vizinhos por que a criança tem e terá crises durante a quarentena?
No primeiro relato, a mãe foi massacrada pela vizinha de um apartamento próximo, incomodada com o o barulho que o Vicente fazia quando passava por essas crises. A estereotipia, no caso dele, faz com que ele corra de um lado para o outro sem parar. E isso, claro, faz barulho que pode ser ouvido de um apartamento para o outro. “Só eu que tenho que entender o lado do filho dela doente. Por favor né”, escreveu irritada a vizinha no grupo de WhatsApp - ao que, pasme, ganhou apoio de outros colegas de prédio. A mãe da criança autista chorou. Registrou boletim de ocorrência. A vizinha seguiu: “Pra isso existem casas e sítios”, sugerindo que a criança e a mãe pegassem as coisas e se mudassem de lá.
Cabe parêntese aqui: autismo não é doença. Preconceito, sim.
Busquei mais informações sobre a realidade das crianças autistas e como enfrentar um período em que a desorganização da rotina afeta a todos, em especial a esse grupo. O apresentador Marcos Mion tem sido personagem importante na disseminação de informações e usa seu canal de vídeos para falar sobre o tema. Ele explicou inclusive sobre os medos que crianças e adolescentes autistas possuem e ficam ainda mais aflorados em momentos ímpares, como esse que estamos vivendo.
A quilômetros de distância, mais um relato. Desta vez, da mãe da Maria Eduarda.
—Ela sempre foi uma criança diferente. Ela não consegue entender que a gente precisa conter as emoções — disse. E seguiu uma descrição de momentos que fez com que eu e ela chorássemos juntas.
Em um deles, a Duda desatou a chorar porque queria que a mãe sentasse para assistir a um filme com ela. A mãe não podia naquele momento porque estava trabalhando. Os gritos da Duda desorganizaram a mãe, em home office por causa do novo coronavírus. E a preocupação que deveria ser com a criança deu lugar à outra:
— Em vez de proteger minha filha daquele medo, eu tentei acalmá-la antes que os vizinhos pensassem que estava acontecendo alguma coisa. Imagina isso. A tua criança não pode ser ela mesma dentro de casa. Do lugar mais seguro. Elas não podem expressar o que elas sentem porque tem gente que julga. Que ameaça chamar o Conselho Tutelar. É uma dor, uma dor que rasga o peito. Eu tenho vontade de proteger e levar minha filha para um lugar longe dessa gente ruim— contou, com os olhos marejados.
A mãe da Duda dividiu com a coluna que no prédio onde mora não sofreu julgamentos, mas no anterior ouviu de um vizinho que a denunciaria para o Conselho Tutelar.
Ah, e a vizinha do primeiro caso não ficou apenas nas palavras. Decidiu imitar a criança e bater o pé revidando o comportamento “barulhento” do menino autista.
— As palavras não me feriram tanto quanto a imitação dela pulando e gritando — contou à coluna a mãe do Vicente.
Reflitamos, pois. Se a covid-19 ainda não tem cura, preconceito tem. Com informação, amor e um pouco de empatia a gente consegue construir um mundo melhor. Vamos nessa.