Quando Inácio era bebê, a mãe, Carla Costa, começou a perceber algumas particularidades no filho: ele não obedecia a nenhum comando, não interagia e sequer falava. Ao completar dois anos, o menino foi diagnosticado com transtorno do espectro autista (TEA), condição que afeta uma a cada 160 crianças no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Imediatamente, ele iniciou terapia, terapia ocupacional, fonoaudióloga e ingressou em uma escola de Educação Infantil. No momento em que o menino fez seis anos, Carla iniciou uma luta para que ele entrasse em uma escola regular. Porém, ouviu muitos nãos.
— Sou a favor da inclusão. Mas ele tem um grau bem severo, não sei se acompanharia. Acabei colocando-o em uma instituição especial, onde ele está até hoje. Ele teve aquisições, mas não fala ainda, não sei vai. Comunica-se através da pasta de figurinhas — relata a nutricionista.
Hoje, aos 12 anos, Inácio tem enfrentado um novo e enorme desafio: cumprir, junto da mãe e do labrador, Quilmes, o distanciamento social.
— Para mim, tem sido difícil. Uma quebra total de rotina. Ele tinha terapias de manhã e escola à tarde. Era bem movimentado. Minha agenda é a mesma dele, tudo o que faço é no intervalo da vida dele. Ele fica perdido, e eu também — desabafa.
Mudar os hábitos rotineiros é uma das questões mais impactantes para quem tem TEA. E da forma como tudo aconteceu, abruptamente, o desafio fica ainda maior.
— A rotina para nós, aquela com horários estabelecidos, em algum momento maçante, para as crianças com fragilidades psíquicas, por vezes é organizadora. Sem elas, pode acontecer de ficarem mais ansiosos e desorganizados — avalia Raquel Alvarez Sulzbach, psicopedagoga do Centro Lydia Coriat e que também é professora na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Para driblar o momento, Carla tem se desdobrado. Criou o que ela intitula de "rotina fora da rotina".
— Tem hora para brincar, para fazer atividades estruturadas enviadas pela terapeuta. Ele gosta de tablet, mas não pode ficar o dia inteiro com a tela. Percebo que ele fica perdido se eu não direciono — relata.
Mesmo com o esforço da mãe, o menino dá sinais de que está entediado: aponta para a figurinha do carro, o que significa que ele quer sair, anda de um lado para o outro dentro do apartamento, pega o tablet e o descarta em seguida, e fica pedindo para tomar banho, ainda que já tenha tomado. Aos poucos, ela tem tentado incluir o menino nas rotinas domésticas: guardar roupas no armário, preparar o próprio leite de manhã.
— Ele não quer fazer nada — lamenta.
Apesar de não saber qual o nível de entendimento do menino sobre a situação atual, Carla fez questão de explicar, de maneira simples, o porquê do confinamento repentino. Usando uma linguagem acessível, ela disse que há um bichinho que deixa as pessoas doentes circulando na rua, o que justifica as raras saídas.
— Ele percebeu que tem alterações: entro no carro e fico passando álcool em gel. Uso máscara. Ele não pode ver a avó, nem o pai, que é médico.
As histórias são variadas e mais ou menos duras, a depender do grau de autismo. Como moderador da Rede Gaúcha Pró-Autismo, Hugo Ênio Braz tem conversado muito com familiares e responsáveis por crianças autistas e ouvido muitos relatos sobre a nova rotina dentro de casa. Em comum, a angústia e o sofrimento para aprender a lidar com a situação.
— Como familiares, não somos profissionais, e, às vezes, ficamos sem saber o que fazer, agindo o tempo todo na base da tentativa — comenta.
Fora os obstáculos que toma conhecimento, Braz ainda sente na pele as dificuldades do distanciamento. Avô de um menino autista, ele sente falta da convivência, antes diária, com o neto.
— Ele rompeu a rotina da escola, de almoçar com a vó e vô. É complicado. A saudade é grande, mas a gente se fala por aplicativos. Minha filha vem aqui no condomínio, e a gente se fala pela cerca — conta.
Como conselho, Braz sugere que os pais sempre busquem suporte especializado, especialmente nesse momento.
— Sempre tem profissionais que se dispõem a ajudar.
“Ele tem uma ligação muito forte comigo, e eu com ele”
Preocupada com a saúde do filho, a enfermeira do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) Maria Inês Bittencourt, de Santa Cruz do Sul, afastou o menino, de seis anos, das atividades que estava habituado em meados de março. Como Thiago tem rinite crônica, ela preferiu se antecipar. Diagnosticado com TEA aos três anos e meio, o menino apresenta dificuldades motoras importantes.
— Thiago sentou tarde, engatinhou tarde, não fala. Tem características bem fortes de autistas — descreve Maria Inês.
Longe da rotina, a mãe já notou uma piora na movimentação do menino. Segundo ela, é perceptível que ele sente falta de se exercitar.
— Ele tem problema de equilíbrio, e isso começa a se exacerbar. Vou ter de planejar uma retomada. Sei que é preciso preservá-lo, mas não pode haver piora do ponto de vista clínico — acredita.
Na tentativa de não ter perdas tão severas, a mãe tem mantido as atividades encaminhadas pela terapeuta ocupacional. Fora isso, também busca reproduzir as práticas que já vivenciava nas sessões, como circuitos com obstáculos, por exemplo.
Como trabalha na área da saúde, em um primeiro momento pensou em se afastar do menino, temendo ser um vetor de contaminação. Depois, se desfez da ideia.
— A gente tem medo, sim, mas toma todas as precauções necessárias. Isolar-se ou não dele? Colegas que têm filhos em outra realidade conseguem tomar essa decisão. Temos duas casas e poderíamos fazer isso, mas entendo que ele tem uma ligação muito forte comigo, e eu com ele. Tentei deixá-lo por dois dias só com o meu marido. No segundo dia, meu marido disse que ele ficou triste. Quando cheguei, fui tomar banho e o Thiago ficou na porta, de saudade.
Lives na diversão
Thomaz, nove anos, apresentou sinais de TEA aos três anos. Além do diagnóstico do transtorno, o menino é deficiente visual. Percebe luz e alguns vultos. Por esse motivo, gosta de algumas rotinas noturnas, como pequenas voltas de carro com a mãe, a professora Lucinéia Dornelles da Silveira Machado
Em casa desde o dia 19 de março, a dupla tem se reinventado para fugir da monotonia. Como tinha um dia a dia repleto de atividades, entre terapias e escola, o menino sentiu muito a ruptura imposta pelo confinamento.
— Os primeiros 15 dias foram muito complicados. Ele ia para a porta toda hora querendo ir para a escola, que ele adora. Ele gosta de rotina. Expliquei que a partir daquele momento não poderíamos sair, que brincaríamos dentro do apartamento — relembra.
Distante da vida com a qual estava acostumado, o menino começou a retroceder, diz a mãe. Voltou a balançar os braços e caminhar nas pontas dos pés.
— Entrei em contato com as terapeutas e pedi ajuda. "O que nós vamos fazer?" — questionou.
Foi então que a nova rotina começou a ser estabelecida: circuitos encaminhados pela fisioterapeuta passaram a ser cumpridos. Exercícios com música, indicados pela fonoaudióloga, entraram para a agenda. E, assim, aos poucos, o menino começou a se acalmar. Nas últimas semanas, também retomou, de forma online, as consultas com a psicóloga, o que também amenizou a ansiedade:
— Está dando certo. Duas vezes por semana, ela liga por vídeo e faz o atendimento. Senti que ele está mais calmo por ouvi-la, por brincarem.
O menino é fã de música, e uma das atividades que têm sido mais prazerosas para a dupla são as lives feitas por cantores e bandas.
— A do Jorge e Mateus, a gente amou. Eu desliguei a luz da sala, ficamos só com a TV, isso chamou a atenção dele. Aí ele dançou e se divertiu muito — comemora Lucinéia.
Exercícios corporais, como pulos em cima da cama e rolar sobre uma bola de pilates com o auxílio da mãe, também entram no rol de atividades para passar o tempo e estimular o menino.
— Vamos nos divertindo. A gente tem que estar bem. Quanto mais os familiares estiverem calmos, melhor será — aconselha a mãe.