O jornalista Caio Cigana colabora com a colunista Juliana Bublitz, titular deste espaço
Com formação acadêmica nas áreas de educação, letras e psicologia, Hugo Monteiro Ferreira é autor do livro A Geração do Quarto. Se dedica a estudar o sofrimento psíquico de crianças e adolescentes. É ainda coordenador do Núcleo do Cuidado Humano da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), entre outras funções. Na obra, trata da saúde mental de meninos e meninas solitários e sem diálogo dentro de casa, mas conectados ao mundo por horas a fio na internet, enclausurados em seus quartos. Nesta entrevista, fala sobre temas que preocupam e dividem a sociedade, como os relacionados ao PL das Fake News e aos ataques a escolas.
Nas discussões sobre o PL, seus defensores diziam que era importante também para proteger crianças e adolescentes. Faz sentido ou é apelação?
Faz sentido. Temos uma geração totalmente tomada pelo mundo virtual. Uma forma de existência paralela. Ao mesmo tempo, uma cibercultura monetizadora, que extrapola limites do bom senso. Temos de refletir sobre como essas empresas (as big techs) utilizam o mundo digital. Como deságua na proteção de crianças e adolescentes? É o público mais vulnerável. Estão usando excessivamente as telas, em contato com vídeos, imagens, jogos, os games de desafio. Não vejo preocupação em limitar vídeos que ensinam a se automutilar, a se suicidar, com métodos e técnicas, e a escamotear isso da família. Há uma corresponsabilidade das empresas, que precisam entrar em uma campanha de proteção de crianças e adolescentes. Essa não pode ser discussão conduzida pelas companhias, como o Google, que tem interesses nisso. A minha preocupação é como garantir a proteção diante de muitas famílias sem estrutura informacional e emocional para lidar com isso. Crianças usam celular e computador sem nenhuma regulação da própria família. Ou da escola. Os dois organismos sociais que deveriam ser responsáveis de forma mais direta não têm estrutura para isso. Aí o Estado não pode se ausentar dessa discussão.
O PL usa o conceito de dever de cuidado, para mitigar a circulação de conteúdo que possa ser configurado como crime contra crianças e adolescentes, como instigação ao suicídio e à automutilação. O que acha desse ponto?
Em 2017, fui consultor de uma CPI no Senado sobre maus-tratos a crianças e adolescentes. Já apontávamos que Instagram, YouTube e Facebook precisavam ajudar mais. Convidamos representantes para explicar o que estavam fazendo, sobretudo quanto à automutilação e ao suicídio. Eles criaram algumas estratégias para denunciar, só que é muito pouco diante do volume e do aumento de grupos neonazistas que sobrevivem nesse submundo. Não temos acesso a isso a olho nu. Quem pode ajudar a evitar o discurso de ódio são as empresas que lidam essas tecnologias. Agora a discussão foi politizada, se é censura ou não. Não é sobre censura. É cuidado com o que se oferta para crianças e adolescentes.
A partir de meados de 2022, aumentaram os ataques a escolas. Isso de certa forma já era alertado pelo livro, não é?
Já havia apontado uma relação direta. O jovem que ataca é da geração do quarto. Sofreu algum tipo de violência. Simbólica, psicológica ou física. Tem histórico de comportamento intrafamiliar violento, de comportamento escolar violento, passou pelo bullying e cyberbullying. Uso excessivo de redes digitais, onde aprende a organizar ataques, e tem relação com o discurso misógino, transfóbico e racista. É uma geração emocionalmente vulnerável, com adoecimento mental e comportamento autodestrutivo. Esse atacante também está isolado, tem dificuldade de expressão verbal, usa o corpo para se expressar. Mas há nuances. Há quem seja adoecido, mas não chega ao comportamento do Coringa (antagonista do Batman), de querer espetáculo, de querer ser preso. Se não tratarmos, acompanharmos, ver o potencial saudável que esses jovens têm, não conseguiremos competir com o submundo da internet. São pessoas de fácil cooptação.
Por que essa atual geração está mais suscetível?
É uma geração mais genuína na expressão das emoções. Nesse grupo, você não vai encontrar pessoas negando emoções. Mas expressam emoções atravessadas pela violência, pelo medo fóbico, pela raiva, pelo ódio. Isso pode ser expressado por heteroviolência (ao outro) ou autoviolência. Outro ponto: é uma geração que poder viver uma vida paralela, dialogando com a inteligência artificial, que pode aprender sem o convívio social tão tradicional que construímos como projeto civilizatório do Ocidente. Uma geração insegura sobre mercado de trabalho, que não tem certeza se o que aprende na escola é o que ela tem de aprender. E os próprios pais não tem certeza do que ensinar.
O que famílias e escolas podem fazer?
São dois organismos sociais reorganizados no século 18, para atender demandas da industrialização. A família deixou de ser expansiva para ser nuclear. A escola deixou de ser do tutor, da pessoa que ia a casa, para ser a do grupo. Essas instituições entraram em acordo para preparar as crianças e adolescentes para as demandas do mercado e do trabalho. Estamos no século 21 e essas instituições precisam ser olhadas. A escola é um grande espaço de discussão democrática, um campo de socialização muito importante para o desenvolvimento. Mas, nas famílias, as portas estão fechadas. Não sabemos o que acontece dentro das casas. Fomos informados por crianças e adolescentes, mas com discursos filtrados. Precisamos saber o que acontece nessas casas. São ambientes privados, mas isso precisa dialogar com a Constituição, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Por que precisam ser protegidos. A família tem de ir para perto da escola. Mas nas famílias as portas estão fechadas. Não querem dizer de fato o que acontece ali, exceto quando o que acontece é crime. Então, antes de ser crime, violência, morte, pode ser prevenção. A escola e a família precisam trabalhar a prevenção. A família precisa ouvir muito as crianças, cuidar, aprender. Tenho uma proposta que desenvolvo mais no meu próximo livro, Como Você Está?, que é de criar um roteiro pedagógico, baseado em cinco pilares para as famílias e escolas: cuidado, autoconhecimento, convivência, dialogicidade e amorosidade.