Há muito tempo não se tinha no Brasil um álbum conceitual com a força e a urgência de Eu Sou Mulher, Eu Sou Feliz, de Ana Costa e Zélia Duncan. Até cabe dizer que, com ele, Zélia, nome já relevante da MPB, atinge outro status na carreira iniciada em meados dos anos 1980. E Ana, até há pouco restrita ao mundo do samba carioca, projeta-se para novos horizontes.
Atendendo à “convocação” delas, mais de 30 conhecidas mulheres da música interpretam 16 canções inéditas. Na contracapa, Zélia reforça o título, sintetizando: “Este projeto é vontade de ser antídoto para todo gesto absurdo e naturalizado de agressão contra a mulher. E festa, porque a alegria é sempre poderosa arma contra qualquer ódio”.
O disco chega num momento em que feminicídios e agressões à mulher atingem números alarmantes no país. Em janeiro, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que de 2016 a 2018 nada menos que 3,2 mil mulheres foram assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros. E outros 3 mil casos não teriam sido notificados, segundo estimativa do Conselho Nacional de Justiça.
As letras de Zélia, as melodias de Ana, os arranjos de Bia Paes Leme e as interpretações das cantoras de diversas gerações e estilos transformam-se verdadeiramente em um álbum-manifesto. As personagens são todas as mulheres, das que batalham na periferia miserável às que lutam por direitos nas ruas da cidade.
Na primeira faixa, as três autoras cantam em uníssono: “Chega de abafar os gritos/ Chega de abusar dos ritos/ Chega de fingir que acha bom, quando está mal/ Chega de calar/ Na hora exata de dizer/ Uma palavra que podia ser/ A chave do acordar”. Em seguida, sem interrupção, é jogralizado um texto de Gênesis e Letícia Brito pelo Slam das Minas do Rio. E aí a primeira música propriamente dita, o samba Uma Mulher, com Alcione. Os sambas (do telecoteco ao enredo) têm algum predomínio, mas há várias levadas rítmicas, como a meio-valsa Sou a Lua do Sertão, com Elba Ramalho, o ijexá Sou Nascente, com Daniela Mercury, e o rockinho Voltei pra Mim, com Fernanda Takai e Nath Rodrigues.
Tem Joyce Moreno (Deixa Comigo), Cida Moreira (Sabemos Ver, uma das mais impactantes), Simone (Eu Sou Mulher, Eu Sou Feliz), Leila Pinheiro (Lida do Amor), Isabella Taviani (Saias e Cor), Áurea Martins (Brilham ao Escurecer), Fabiana Cozza (O Milagre), Luli e Júlia Vargas (Entre Olhos), as irmãs Mart’Nália e Maíra Freitas (Antes Só), Teresa Cristina e Marina Íris (Não É Não) e, fechando, só Mônica Salmaso e piano (Nascer Mulher).
Até aqui não apareceu nenhum homem. Vão aparecer cinco entre as 15 mulheres instrumentistas. Alguns nomes: Manu da Cuíca, Nilze Carvalho, Lan Lanh, Délia Fischer, Paula Borghi, Ignez Perdigão, Pretinho da Serrinha e o gaúcho Pedro Franco.
É um disco histórico. E muito bom de ouvir. Zélia escreveu um texto para o material de divulgação – que tem também textos das escritoras Eliane Brum, Marcia Tiburi e Vilma Piedade. Começa assim: “Minha vida mudou quando comecei a me conscientizar sobre minha condição de mulher, em todas as suas implicações, em todos os perigos e percepções que essa condição significa. A ideia de sororidade me encanta. Saber que temos umas às outras me alivia. Fazer essas canções com Ana Costa foi catarse, grito, gozo feminino (...). Ver as partituras transcritas por Bia Paes Leme, nota por nota, foi nossa primeira legitimação. Receber nossas colegas no estúdio foi nirvana, uma emoção que nem sei explicar”.