“Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”. Lembrei desse pequeno grande texto de Brecht ao ouvir o novo álbum de Egisto Dal Santo e pensar em sua trajetória de 30 anos de batalha em prol do pop gaúcho. Com cuidadosa produção e participação de 16 convidados, o disco se chama 4 Magníficos e resgata (essa é a palavra) músicas de quatro roqueiros pouco lembrados ou quase desconhecidos que já foram para a nuvem. Mogadon, com letra anarquista de Flávio Coiro Dias, o Chaminé (1950-2004), abre os trabalhos em clima de rock’n’roll cru, Egisto mordendo no vocal.
Único notório, o porto-alegrense Chaminé integrou várias bandas (entre elas o Saracura) e tocou com meio mundo, deixando em todos a marca do peso rítmico de seu contrabaixo. Mas não chegou a construir uma carreira solo. Os outros são Luiz Carlos Gomes, o Kung (1961-2010), de Soledade, conterrâneo de Egisto; Carlos Roberto Pezzi, Carlinhos Bugre (1959-2014), também da Capital, que integrou bandas como Auge Perplexo; e Paulo Ricardo Garcia, o Paulo Pink (1958-2016), de São Leopoldo. Egisto o conheceu quando veio cursar Jornalismo na Unisinos.
— Eu o achava brilhante, mas nunca aconteceu. Um dia foi fazer um exame no hospital e não saiu mais, tinha câncer terminal.
Ouvindo o disco, no geral reunião de rock’n’roll meio stoniano e áspero com alguns blues e baladas, cantados visceralmente por Egisto, entende-se o porquê de ele ter focado nas músicas desses caras. Sim, são músicas que dizem, todas compostas nos anos da ditadura e compatíveis com o clima do Brasil atual. “Espero que isso tudo melhore antes do Carnaval/ Espero que isso tudo melhore antes do juízo final”, diz a letra de Rock D’Nação, de Carlinhos Bugre. O Remédio, outra de Chaminé, é barra pesada. Tem alguns refrescos, também, como Jagunço, de Kung, que chega a lembrar o Almôndegas. E Tempos de Viena, de Bugre, que faz pop com Beethoven, Lizst, Bach, Chopin, Strauss e tal.
Sobre Egisto, 55 anos. Chegou a Porto Alegre em 1984, depois de abandonar o curso de Jornalismo em São Leopoldo e uma temporada em São Paulo. Formou a banda Colarinhos Caóticos, com a qual lançou dois discos, o primeiro em 1988. Teve vários álbuns solo depois, com um trabalho de vanguarda pop ainda não bem avaliado, talvez por sua radical opção independente. Como produtor, pelos selos Antídoto/Acit e Orbeat/RBS Discos, assinou A Sétima Efervescência, que lançou Júpiter Maçã (1996). Os primeiros da Tequila Baby, de Charles Master, dos Cowboys Espirituais. O CD Baladas do Bonfim (2002), vários artistas cantando Nei Lisboa, foi ideia dele. E por aí vai, são vários.
Criou a banda Histórias do Rock Gaúcho, ainda em atividade. Integrou a extinta A Cretinice me Atrai. Com o Bando dos Ciganos, acompanhou durante anos Bebeco Garcia, ex-Garotos da Rua. Entre muitas outras coisas, faltou dizer que no novo disco, além de fazer os arranjos, ele toca baixo, guitarra, violão, bandolim, piano, sintetizador, ao lado de Cristiano Bertolucci, Vini Tonello, Anjinho, Vasco Piva, Fafá Duparten, Giovani Berti, Fábio Ly, Gambona, Sérgio Coelho, Bebeto Mohr, Lucas Koteck, Alex Lappan, Bidado e Marietti Fialho. As guitarras estão sempre a mil e os sopros dão diferenciais aos arranjos. O disco não seria feito sem a ajuda de sua amiga Jo Ann Ungaretti, garante Egisto.
“Carmen & os Violões”: qualidade internacional
O público que lotou o Teatro da Santa Casa, em Porto Alegre, para assistir ao show da gravação ao vivo do espetáculo Carmen & Os Violões, em dezembro de 2018, aplaudiu com entusiasmo a performance da camerata Violões de Porto e da premiada bailarina Ana Medeiros (La Negra). É o que se ouve no disco, afirmação da excelência do trabalho – mesmo que não se possa “ver” o desempenho de Ana dançando, suas castanholas e sapateado dão brilho extra ao conjunto de oito violões.
Trata-se de um trabalho raro, de qualidade internacional, daí penso que os responsáveis por ele deveriam fazer todo o empenho para levá-lo a outros países, a começar pela Espanha, onde Ana estudou e onde todos se sentiriam em casa.
Carmen & Os Violões começou a surgir no final de 2017, no RS Guitar Festival, quando a camerata e a bailarina (ou bailaora, como se diz no flamenco) se apresentaram juntos pela primeira vez. O resultado foi uma revelação, uma epifania, como diz o violonista Marcel Estivalet, diretor-geral do espetáculo, que resume no encarte: “É um concerto cênico, música de concerto acompanhada de coreografia sobre um enredo inspirado na ópera Carmen, de Bizet, e na biografia de Carmen Miranda. A coreografia é baseada no flamenco, sem deixar de lado aspectos da dança contemporânea e do samba”. Com idades entre 23 e 43 anos, os integrantes da camerata estudam ou estudaram música na UFRGS.
Do impacto da abertura, com a Danza Ritual del Fuego (Manuel de Falla), à apoteose final brasileiríssima, com Tico-Tico no Fubá (Zequinha de Abreu) e Touradas em Madri (João de Barro/Alberto Ribeiro), o álbum não perde o pique em nenhum momento. O ouvinte vai sendo levado mais e mais para o interior das músicas pela sonoridade ensaiadíssima dos violões acentuando a beleza intrínseca delas. A parte inicial tem ainda Introduction et Fandango (Boccherini). Na parte 2 vêm Batuque (Nazareth), Ó Abre Alas e Lua Branca (ambas de Chiquinha Gonzaga). Depois vem o sensacional trecho dedicado a cinco suítes de Carmen (Bizet). E por fim, Abismo de Rosas (Américo Jacomino) e Gaúcho (Chiquinha Gonzaga).
Além de Estivalet, a Violões de Porto tem André Godinho, Bruno Duarte, Eduardo Pastorini, Douglas Wagner, Felipe Herbert, Rafael Lopes e Thiago Kreutz. Muito obrigado, rapazes.