Semanas atrás escrevi sobre Um Homem Célebre, conto de Machado de Assis sobre o pianista Pestana, inspirado criador de polcas dançantes, apreciadíssimas pelo público (principalmente o feminino), mas que ele fazia a contragosto, desejando mesmo ser um autor erudito, no que fracassou, apesar das tantas tentativas. O conto abre Aquarelas do Brasil, antologia sobre a presença da música na literatura organizada por Flávio Moreira da Costa. Lançado originalmente em 2005, o livro retorna em segunda edição revista e ampliada, com sete novas histórias. De Machado (1839–1908) ao também carioca Sérgio Sant’Anna (1941), são 33 contos de 24 autores e leitura saborosíssima.
Mesmo presença dominante em vários textos, como esse de Machado, a música não é o tema principal mas o pano de fundo da maioria. Os sujeitos dos contos são o Brasil e o povo brasileiro ao longo de mais ou menos 150 anos, a partir da metade do século 19. Então, o que temos é também um resumo vivo, com cores e sons reais de nossa história cultural. Alguns contos são especialmente significativos nesse sentido. Por exemplo, O Samba, de Magalhães de Azeredo (1872–1963), se passa em uma senzala, em meio ao horror da escravidão. Foi publicado em 1900, e Moreira da Costa afirma ser a primeira menção à palavra “samba” como designativa de uma reunião com canto e batuque.
Azeredo descreve as jovens que dançam: “Que elasticidade de molas têm as cinturas finas entre os seios fortes e os amplos quadris!”. A sensualidade e o erotismo estão em inúmeros contos, mostrando que os preconceitos sexuais sempre foram desafiados. Em Cló, Lima Barreto (1881–1922) conta que, em um baile de Carnaval, “madame Rego e Silva e o marido levantaram-se com a pequena Dulce, amante de ambos no dizer da cidade em peso”. Em O Bebê de Tarlatana Rosa, também no Carnaval, mas nas ruas, João do Rio (1881–1921) registra a atração de Heitor por uma bela moça, meio estranha, voz rouca. Ela o provoca mas é fugidia. “Talvez seja um homem”, desconfia um amigo. Travesti em 1900?
Cito estes contos porque a música popular sempre esteve ao lado dos amantes da noite, da liberdade e da libertinagem. Claro que Aquarelas do Brasil anda além disso, mas não deixa de ser interessante notar que os autores atuais dos contos “musicais” praticamente não utilizem o componente sexual. Talvez porque liberou geral. E diante de contos como o fantástico O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de Sérgio Sant’Anna, quem precisa disso? Na orelha do livro, Zélia Duncan o define: “Uma pesquisa fina e abrangente, que nos relembra um lugar hoje vazio e abalado: a autoestima brasileira”.
Autor de mais de 40 livros, entre romance, conto, ensaio, coletânea e biografia, Flávio Moreira da Costa é considerado o mais importante antologista brasileiro. Sua primeira obra, Antologia do Conto Gaúcho, é de 1970. Nascido em Porto Alegre em 1942, vive no Rio de Janeiro desde 1963. No texto de apresentação de Aquarelas do Brasil, ele faz uma inconfidência que, acho, pela primeira vez vem a público: “Meu pai falava também de Lupicínio Rodrigues, que fora empregado – bedel, como se dizia – da Faculdade de Direito de Porto Alegre (e, comentava-se em segredo, filho bastardo do diretor, um desembargador conceituado)”.
AQUARELAS DO BRASIL – CONTOS DA NOSSA MÚSICA POPULAR
De Flávio Moreira da Costa. Editora Nova Fronteira, 318 páginas, R$ 44,90.
OS AUTORES NA ANTOLOGIA
Machado de Assis, Olavo Bilac, Manuel Antônio de Almeida, Arthur Azevedo, Lima Barreto, Raul Pompeia, João do Rio, Eduardo Campos, Inglês de Souza, Sérgio Sant’Anna, Bernardo Élis, Alcântara Machado, Nei Lopes, Inácio Peixoto, Ribeiro Couto, Aníbal Machado, Marques Rebelo, Magalhães de Azeredo, João Antônio, João Gilberto Noll, Carlos Jurandir, Jaime Prado Gouvêa e Flávio Moreira da Costa.
ANTENA
TRIBUTO A OSCAR PETERSON
De Gilson Peranzzetta
“Desde que ouvi pela primeira vez um disco de Oscar Peterson, ele se tornou referência para mim”, conta o carioca Peranzzetta, um dos maiores pianistas brasileiros, com vasta discografia. Cerca de 18 anos atrás, ele foi convidado para participar de um projeto em homenagem a grandes nomes do jazz tocando o repertório de Peterson. Com Paulo Russo no contrabaixo e João Cortez na bateria, o show foi gravado ao vivo e, finalmente, está sendo lançado em disco. A atuação do trio é brilhante, com Peranzzetta especialmente inspirado. São 11 temas, de Somewhere (Bernstein) a Days of Wine and Roses (Mancini), Con Alma (Gillespie), cinco de Cole Porter, entre eles I’ve Got You Under My Skin, e uma Garota de Ipanema quase desconstruída pelo arranjo e os improvisos. Fina Flor, R$ 29,90.
FRONTEIRA
De Rafa Castro
Com 10 anos de carreira desenvolvida em Minas Gerais, desde 2017 vivendo em São Paulo, o cantor, compositor e pianista Rafa Castro começa a ganhar novas audiências. Em Fronteira, terceiro álbum, ele mostra já se sentir em casa na nova cidade, pois conta com convidados da estatura de Mônica Salmaso, Teco Cardoso e Léa Freire. “Neste disco consegui juntar dois pilares, a música de Minas e meu trabalho de trilhas sonoras”, resume. Já na primeira faixa, Casulo, instrumental com vocalise, ele mostra um estilo que mescla princípios jazzísticos e estrutura musical viajante, etérea, lembrando o também mineiro Marcus Viana. Esse clima marca o álbum, que tem quarteto de cordas em vários arranjos. Das 10 faixas, cinco são instrumentais. Rafa ainda será bastante conhecido. Independente, distribuição Tratore, R$ 25.
ALÉM
Do Kiai Grupo
Vem da cidade de Rio Grande o quarteto instrumental que tem tudo para figurar entre as mais expressivas formações do novo jazz made in RS. Ki + Ai significa, na filosofia oriental, concentração de energia. Energia, vibração e atitude não faltam neste primeiro disco de Marcelo Vaz (piano, teclados), Zazá Soares (guitarra), Dionísio Souza (baixo) e Lucas Fê (bateria), juntos desde 2014. Eles têm influências que vão de Pat Metheny a Egberto Gismonti, passando por Keith Jarrett, Miles Davis e Hermeto Pascoal. Está na cara que ouviram bem, pois o álbum (que vem dentro de uma capa-objeto) tem música de altas esferas feita sem pressa – a composição menos extensa, Smile Black, tem quase oito minutos; a mais extensa, Há Tempos, nada menos que 15 minutos! Escápula Records, R$ 25, à venda em vapordiscos.com.br.