Com mínima isenção, se perceberá que a retirada das armas de fogo da circulação tem servido apenas para modificar os instrumentos de agressão dos raivosos circulantes por aí.
A faca que interrompeu a leitura da professora na sala de aula em São Paulo ou a machadinha utilizada para craniotomia de quatro inocentes em Blumenau não constam do rol de armas carentes de registro, treinamentos para uso ou avaliação psicológica dos usuários.
Como não há nenhuma evidência, estatística ou factual, de que alguém armado se sinta estimulado à agressão, parece óbvio que o foco da discussão está equivocado.
A divulgação do número de mortes por arma de fogo nos EUA omite um dado crítico: 55% decorrem de suicídio.
A distribuição de armas no mundo é muito heterogênea. Os EUA lideram o ranking mundial com 121 armas para cada 100 habitantes, enquanto o país líder na América do Sul, o pacato Uruguai, tem 36, e o Brasil, onde o desarmamento é considerado prioritário, tem modestos 8,8 armas por 100 habitantes (IPEA, 2018).
Percebe-se então que não é a disponibilidade de arma de fogo que aumenta a criminalidade.
A afirmação de que mais armas nas mãos do cidadão comum significa mais armas ao alcance da bandidagem é uma suposição contestável. Perguntem a um morador de subúrbio, que não conta com um sistema de alarme, cerca elétrica ou cão de guarda, se ele dorme melhor com uma arma ao alcance da mão ou contando com o idealizado policiamento ostensivo na rua.
Nos 25 Estados americanos que atuam com o conceito de "porte constitucional", ou seja, a lei estadual não proíbe o porte de arma para os cidadãos comuns, não há maior criminalidade. Pelo contrário, há menos crimes de invasão domiciliar, latrocínios e estupros. E lá, como em qualquer lugar, isso decorre de uma razão muito compreensível: os bandidos de qualquer latitude têm um sentimento em comum, eles morrem de medo de levar um tiro. A propósito, no Texas, por exemplo, desde 2016, é permitido o porte visível de arma, na expectativa de que isso desencoraje os agressores.
A tendenciosidade na discussão do problema, lá e aqui, se revela ostensiva em pelo menos dois tópicos:
- A divulgação do número de mortes por arma de fogo nos EUA omite um dado crítico para o julgamento: 55% dessas mortes decorrem de suicídio, o que obviamente isenta a arma da relação causal, a menos que se demonstre que guardar uma arma no armário possa ser causa de depressão.
- Quando se anuncia o aumento de armas de fogo no Brasil nos últimos cinco anos, se constata que as mortes violentas caíram nesse período em média de 68 mil para 40 mil/ano. Curiosamente, um desarmamentista fanático, num julgamento estapafúrdio, declarou que essa redução poderia ser ainda maior não fosse a facilitação às armas. Com o intuito de convencer alguém, ele estimou em 6,3 mil mortes a menos. Não se sabe de onde tirou esse dado estatístico, reforçando a tradição brasileira de fazer acreditar que tudo o que se acompanha de um número é verdadeiro.
O Brasil tem oito entre as 50 cidades mais violentas do mundo, todas elas nas regiões mais pobres do país (ONG: Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal). Colocar a culpa nas armas tem dois problemas capitais: primeiro, ignorar o dano desestruturante das drogas na vida de um país; segundo, ignorar do que um pai insone é capaz de fazer quando suas crias choram de fome durante a noite.
Restaurar a autoestima pela oferta de um emprego digno e oferecer ajuda aos dependentes de drogas para tornar a figura do traficante dispensável é muito mais inteligente do que desarmar a população, facilitando o "trabalho" dos bandidos.
Então, voltando ao primeiro parágrafo: precisamos mudar o foco da discussão para reconhecermos as razões de tanto ódio gratuito, e assumirmos que muito mais assustador do que o método da agressão é a vontade incontrolável de agredir.
Enquanto os espíritos não forem desarmados, mudarão as armas, mas o ódio, incontido ou dissimulado, sempre achará um instrumento que sirva para extravasá-lo.