Há uns 30 anos, tive certeza de que os nossos filhos têm rotas independentes e autônomas e que a nossa participação será, no máximo, inspirá-los com exemplos. Claro que sempre torcendo que pelos menos algumas das nossas virtudes (essas que os pais sempre acham que têm de sobra) possam ser selecionadas para essa delicada missão de servir de modelo.
Naquela época, pela primeira vez, reclamei que uma encomenda tão preciosa viesse sem manual de instruções, justamente numa tarefa em que não podíamos errar, mesmo sendo falíveis como somos.
Com espírito científico, habituado a esgrimir teses por erros ou acertos, a acatar ou rejeitar hipóteses, me parecia desesperadora a possibilidade de que a conclusão, com a matéria pronta, pudesse resultar numa lacônica mensagem: "Inadequado para publicação e abaixo a relação de itens que precisam ser modificados para nova tentativa".
Aprendi com meu velho que o grande mérito de ser pai é se tornar confidente dos filhos. De modo que, diante de qualquer apuro, não tivéssemos dúvidas de a quem recorrer, e com a certeza de que haveria confidencialidade, fosse qual fosse o erro ou a crítica.
A vida avançando trouxe a descoberta de que o único elemento imprescindível no desempenho dessa tarefa puramente intuitiva é a disponibilidade de afeto, permanente e incondicional. Mas era frustrante não encontrar nem esta recomendação nos tratados de desenvolvimento do adulto.
Com tal pobreza bibliográfica, restavam-nos as âncoras afetivas de quem idolatramos desde pequenos, com lições que incorporamos não estudando nos livros, mas prestando atenção. Foi assim que aprendi com meu velho que o grande mérito de ser pai é se tornar confidente dos filhos. De modo que, diante de qualquer apuro, não tivéssemos dúvidas de a quem recorrer, e com a certeza de que haveria confidencialidade, fosse qual fosse o erro ou a crítica.
Senti muita saudade do meu pai quando o Evaristo, um fronteirista de 77 anos, com um jeitão sereno dos campesinos, submetido há apenas quatro dias a uma cirurgia torácica aberta, porque o SUS ainda não dá videocirurgia, me chamou para uma conversa séria. Quando entrei na enfermaria, estranhei a debandada dos outros quatro pacientes. Se a saída deles tinha a ver com a privacidade da conversa, então, de fato, era coisa séria. E era. "Pedi que eles saíssem quando o senhor chegasse porque nunca me acostumei com dividir problemas com quem não possa me ajudar", ele me disse.
Parecia meu velho ressuscitado, e me encantei com o Evaristo. "E eu, o que posso fazer, pelo senhor?", perguntei. "É um baita favor, doutor, e eu não estou preparado para ouvir um não." Pela seriedade, eu tive certeza disso. "Bueno, doutor, mesmo que seja arriscado, eu preciso ir para casa amanhã bem cedinho!".
"Mas o que o aconteceu, seu Evaristo?" Ele me respondeu: "Essas coisas de filho. O mais moço, que anda sem trabalho, me ligou pedindo um dinheiro emprestado e eu disse que não era banco e que já era hora dele botar juízo na cabeça. Ele falou umas coisas que não gostei, eu disse outras, e ele desligou na minha cara. Mais tarde a minha velha me contou que ele tinha conseguido um emprego de tratorista em Melo, no Uruguai, e que o dinheiro era para a viagem! Imagine, doutor, tadinho do meu guri!".
Tentei argumentar: "Mas é uma viagem longa, e perigosa na sua situação. Seu menino não pode esperar?".
"Não, doutor, uma coisa que aprendi com a minha filharada é que aqui cabe a pressa, porque pai que é pai não deixa a mágoa de filho ressecar!".