"Nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão." (Mario Quintana)
Lá atrás, no início da minha vida cirúrgica, fui mais inflexível na orientação dos pacientes em relação aos cuidados com a saúde. A mais frequente e intensa das batalhas foi contra o tabagismo, esta que se impôs como a maior enfermidade do século 20, tendo causado mais mortes do que todas guerras somadas. E olha que passamos por extermínios em massa, que constrange assumir, foram comandados por uns tipos que, na contagem de genes, eram iguais a nós.
De qualquer modo, com respaldo científico e treinamento adequado, me fiz combatente de todas as fontes de doenças, porque elas, as doenças, eram mais facilmente decifráveis. Ganhei causas em número suficiente para preservar a esperança e o entusiasmo, e perdi as necessárias para manter a humildade, e conservar a gana de tentar ser melhor, custasse o que fosse.
Os fumantes continuam morrendo de uma doença que mata sete de cada 10 pacientes, apesar da consciência presumida da ameaça.
Quando começaram, com atraso, as campanhas antifumo, porque todos os malefícios já eram conhecidos, esperava-se, e hoje se sabe que ingenuamente, que os fumantes tendo consciência dos riscos, ao primeiro sintoma, procurassem recurso médico, uma expectativa que nunca se cumpriu. E por uma razão simples: diante da proximidade real de uma autoflagelação imposta por um risco que aceitamos correr, o refúgio mais previsível é o biombo da negação.
E os fumantes continuam morrendo de uma doença que mata sete de cada 10 pacientes, apesar da consciência presumida da ameaça. Foi então que tive, e aproveitei, a chance de entender o quanto pesa, na visão tendenciosa de alguns fumantes, gastar uma vida sem desfrutá-la. Em 1980, operei o Adelino, um homem de 47 anos com um grande tumor de pulmão. Ele teve uma evolução melhor do que a prevista pelo tamanho da lesão e ficamos amigos. As consultas de revisão terminavam, invariavelmente, em uma reprimenda: não era possível que ele não percebesse que seu fôlego estava, a cada ano, mais curto. Ele ria debochado e comentava: "Se o senhor provasse desse amarelinho que eu mesmo planto e preparo em rolo, ia entender porque gosto tanto desse parceiro!".
Morreu aos 68 anos, cercado por uma família amorosa, e conservou o humor até o final. O médico que o assistiu na iminência da morte se encarregou de passar o último recado: "Agradeça ao doutor que me deu 21 anos extras para que aproveitasse o prazer de pitar meu cigarrinho!".
Na mensagem não havia nenhum arrependimento, só gratidão, pelo respeito, quase cúmplice, às suas prioridades. Aquele foi o momento mais agudo da descoberta que não basta tratar da doença se o sentimento do seu dono for ignorado.
O Mario (aquele senhor que escreveu que "Sonhar é acordar-se para dentro!") era um homem especial, e mesmo tendo chegado aos 87 anos, continuava sendo admoestado pelos médicos porque nunca considerou, de fato, parar de fumar. Um dia extravasou: "Vocês médicos são uns chatos, porque não passa um dia sem que algum venha me dizer que eu preciso, urgentemente, parar de fumar. Enquanto isso, eu fico aqui, esperando que alguém me ofereça uma alternativa que substitua o prazer que o cigarro me dá!".
Dei razão ao Mário, mesmo sabendo que com essa hipervalorização da vida prazerosa nunca serei cogitado para uma função em saúde pública. Acho que vou ter de me contentar com a alegria de entender as pessoas e ao significado que algumas dão ao viver para dentro.